às vezes parece que vivi numa outra dimensão. Que aquela que ria, pulava e saltitava tão inocentemente não era eu, mas outra pessoa. Aquelas experiências que o meu corpo relembra apagaram-se da mente, como se tivessem apenas existido numa realidade paralela. Olho para trás, por detrás do ombro. Era eu, com um cabelo diferente, um corpo mais delgado e robusto, os olhos mais verdes do que agora. Era eu, com as minhas vivências que não são mais minhas, porque pertencem a uma outra vida, que vivi outrora.
Quando é que se deu a brusca separação? Quando é que me apercebi que eu já fui outra, e que essa outra era eu em tempos? Esforço-me por recordar mas não consigo. Não me consigo lembrar se foi antes ou depois do cancro. Como se o cancro fosse a fronteira invisível destas realidades paralelas.
Depois de ter passado seis anos a me reconstruir, me reconhecer e a lutar para estabelecer os meus gostos, valores e medos, escolhi um rumo. Depois veio o cancro, esse cabrão, que me obriga a recomeçar tudo de novo. Quem eu sou, quais são as prioridades essenciais da minha vida, porque é que aqui estou, porque é que a vida vale a pena, o que é ser feliz, porque é que não gosto de ser infeliz, como é que ainda não sei o que quero, mas consigo saber tão bem o que não quero. Não sei se faria toda esta desconstrução se não fosse o cancro. Mas o facto é que ele esta cá, ou esteve cá (para inseminar aqui um pouco de optimismo), e não posso dissociá-lo da vida que vivo agora. Da pessoa em quem todos os dias me torno, através das minhas escolhas e do meu livre-arbítrio. Eu respiro todos os dias e ele respira comigo.