As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2012

E no meio das minhas deambulações, decido entrar num museu para perguntar onde era o multibanco mais próximo (pois, a minha faceta cultural deixa muito a desejar). Olhei em volta, vi que a entrada não era muito cara (5,50€), fui levantar dinheiro e voltei para visitar o Museu. Instalado num palácio junto ao Grande Canal, vi de tudo: armas japonesas, uma estátua Khmer, estampas orientais, pintura do século XIX e, o melhor de tudo, uma exposição de um pintor que nunca tinha ouvido falar, Gennaro Favai. Entrei na sala e de repente dei de caras com uma pintura de uma rua e dois edifícios que me pareceram familiares... C'était Paris !

 

 

Favai pintou Paris, Veneza, Capri e a exposição tinha também retratos do artista pintados por outros artistas, como Modigliani. Sem pindériquices intelectuais apreciei a arte pela arte. Gostei do que vi porque achei bonito. Foi das coisas que mais gostei de ver e de sentir em Veneza, um acaso completamente inesperado e uma descoberta que valeu bem mais do que os 5€ e tal pagos à entrada.

 

 

 

Gennaro Favai, visioni e orizzonti 1879-1958. No Ca'Pesaro, de 17 de Dezembro 2011 até 11 de Março de 2012.


Sexta-feira, 24 de Fevereiro de 2012

 

 

Tenho andado enervada esta semana. Enervei-me na sala de espera, com os técnicos, até com o Lambard. Enervei-me com os atrasos, com o aperto da máscara, com o facto de estar ali deitada, outra vez, naquela marquesa, pela 5a vez. Ontem sai de lá sem conseguir conter as lágrimas dos nervos, e só o pedalar na bicicleta como se não houvesse amanhã me conseguiu acalmar um pouco. Cheguei a casa já arrependida de me ter enervado com o pessoal (apesar de um dos técnicos ter cometido um erro crasso comigo: interromper-me e dizer-me para eu ficar calma, em vez de me ouvir; quanto mais me ordenam para ficar calma, mais eu fico possuída).

 

Não estou a conseguir pôr-me num right frame of mind para esta radio. Nem sei bem como explicar isto a quem nunca fez radio. é um tratamento que não se vê, não se cheira, não se sente. São protões e electrões, que penetram a pele e restantes tecidos mas os raios em si são completamente invisíveis. Sentem-se, mais tarde, os efeitos secundários chatos, as sequelas que ficam e, se tudo correr bem, ficam também os resultados positivos. Acredito que o corpo, a mente, basicamente a pessoa inteira, tem de aceitar a radiação; tem que estar disposta a recebê-la, tem que de forma um bocado new-age entranhá-la. Não li nenhum artigo cientifico sobre isto, mas pela minha experiência, as coisas correm melhor quando são plenamente aceites. E não tenho conseguido aceitar. Este fim de semana vai ser dedicado a respirar fundo e parar de tentar fugir da minha condição. Travar o medo e ocupar o espírito com algo que é extremamente complicado para mim fazer: confiar. Confiar que esta radio vai funcionar, sem "E se?" Confiar na mestria do Lambard, que está a dar o seu melhor e eu sei disso (e o melhor do Lambard é extremamente bom...). Confiar que algures num dos meus futuros possíveis há aquele sem mais recidivas. E tentar ser eu própria no meio disto tudo. Não me perder nas minhas duvidas e inseguranças, confiar em mim, nos meus instintos, na minha ambição e nos meus objectivos. Tenho que acreditar que tudo é possível, vestir a armadura de Jeanne d'Arc de Lisboa, Tomb Raider ou Robocop, whatever, mas vesti-la, e não baixar os braços nunca. Mesmo quando o caminho não me faz feliz, mesmo quando a estrada me destrói aos poucos, tenho que conseguir acreditar que ainda virá algo de bom na minha vida, dê lá por onde der.

 

Não sou pessoa de crenças religiosas, não acredito em Deus nem em outros deuses. Se acreditasse esta confiança chamar-se-ia fé; Mas no fundo não interessa nada -a rose by any other name-; em alturas completamente desesperadas, onde estamos completamente à mercê do destino, se não se acreditar é o fim. Acredito nos meus princípios, nos meus valores, acredito em certos traços do meu carácter que sei apreciar, acredito na vida e no sentido das coisas, acredito no poder da Natureza e no Ying e Yang do mundo. Acredito na dor, no sofrimento, na fome e na sede, acredito na lealdade, na liberdade e em ser inteira. Acredito na sensibilidade, na beleza das coisas, na Arte, na música, no sol quando ele me aquece a cara, na poesia e no poder da palavra escrita. Acredito na potencialidade das lágrimas e gostaria de um dia acreditar sem barreiras de segurança no poder do amor e da amizade. Acredito na força interior, na bravura, na coragem. Estou a começar a acreditar que ser frágil e forte ao mesmo tempo não é disparatado nem forçosamente contraditório. E se estas crenças todas não me permitirem arcar com mais esta radioterapia, então não sei o que o que permitirá.

publicado por Silvina às 22:42


...num barco em Veneza!

eheh



Achei que a cidade tem a dose de decadência ideal. Se os tempos fossem outros, sentir-me-ia uma princesa à janela renascentista, numa vida de deboche e sem cancro.

 

todos mascarados menos eu

 

 

vida quotidiana no canal

 

"excuse-moi", je suis perdue...

 

Chega para lá que ainda cabe mais uma...

publicado por Silvina às 14:29

Quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2012

Parece que estou numa fúria blogueira, é o que dá 5 dias sem acesso à internet. Hoje foi dia de primeira sessão de radio. Digo primeira e já me estou a contorcer de riso por dentro. "Primeira" é um belo eufemismo. Mas eu até nem desgosto de eufemismos, portanto siga. Hoje fiz a mise en place (medições, imagens, mais medições). Estive cerca de 1h30 com a máscara enfiada na cabeça. A coisa só não se processou de pior forma por duas razões: porque eu mandei vir e não me calei enquanto não me cortaram a máscara à volta dos olhos e da boca; e porque o Dr Lambard esteve lá a acompanhar o processo todo. Foi ele que fez os cortes na máscara. Depois puseram-me aquilo e eu percebi que devia parecer um cavaleiro das cruzadas versão século XXI radioactiva. Facto que o querido Lambard confirmou dizendo que eu parecia a Jeanne d'Arc de Lisboa...

 

Um bocado depois disse-me que eu parecia era o Indiana Jones. Eu respondi que me faltavam os acessórios... Ele pensou melhor e disse que eu parecia era o "ai aquela, como é que se chama? O Tomb Raider!" Obrigada Lambard! Antes ágil e mamalhuda do que Indiana sem chicote!

 

 

publicado por Silvina às 23:28


Ainda a propósito do S. Valentim, dei-me conta que me irritam os artigos em revistas e em sites sobre cancro que ao falarem nos problemas de sexualidade do doente oncológico só se pronunciam sobre aqueles doentes que estão casados ou em casal. Ah e tal, "fale com o seu parceiro", "seja sincero", "seja aberto e partilhe os seus medos e angústias em relação ao seu corpo", etc., etc. Ora tudo muito bem se existe amor e se o casal estiver junto há tempo suficiente para se conhecer muito bem e se amar mais ainda. Bons conselhos para aqueles que se encontram efectivamente... em casal!

 

Mas ninguém fala dos pobres desgraçados com cancro que estão solteiros, e portanto sujeitos a um engate esporádico, ou, pior, a um qualquer ritual de engate e enamoramento que torna essa questão da articulação de "cancro" e "sinceridade" muito mais difícil. Ninguém quer ouvir num primeiro encontro historias de cancro. E ninguém com cancro quer ter que explicar num primeiro encontro porque é que não tem uma mama ou porque é que não tem parte do maxilar e em consequência disso se encontra impedido de beijar normalmente (e por ai fora, sendo que "por ai fora" é uma metáfora para sexo oral).

 

Este ano abominei ainda mais o S. Valentim por isso mesmo. Pela falta de diálogo sobre problemas como este, pela falta de compreensão e sobretudo, pela falta de soluções concretas.

publicado por Silvina às 23:11
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Antes dos Trovante, já Fernando Pessoa exprimia este sentimento de saudade pelo que está para vir, nostalgia da infância que não se teve, misto de coração apertado de tentar ser outro e o próprio ao mesmo tempo. Coexistir sem existir limitação de tempo; sem haver a dimensão do tempo. Esse mesmo tempo que me assombra e me mede os dias. Odeio-o. E festejo-o ao mesmo tempo. Já passou um ano. 365 dias, muitas horas e minutos e ainda não morri.

 

Mas todos os dias penso nessa certeza de todo o mortal, que não podemos fugir ao tempo. E sinto muitas saudades do futuro que me prometi, do mar de possibilidades que se tem aos 20 e poucos anos. Tenho saudades das ilusões, dos moinhos de vento, das convicções inabaláveis e da sabedoria adolescente tão definitiva que tinha. Saudades dos meus pilares não serem abanados, uns, ou não terem morrido, outros. às vezes viajo no tempo no século XXI. E tenho ardentes saudades do meu futuro, o que devia viver, o que me estava destinado noutro canto da História. Estou presa, confinada a um presente que não me deixa cortar amarras, e tenho o resto dos pilares que me restam de molho, à espera que a madeira apodreça e que a casa entorte.

 

(Só alusões a Veneza, que foi uma viagem muito -demasiado?- introspectiva)

publicado por Silvina às 23:04
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Não tenho sono e devia, e é nestas alturas incómodas que me dá a vontade de escrever, que junto textos enormes e me esforço por os guardar em nota mental, esperando que sobrevivam à noite, e que no dia seguinte os possa apontar num papel. Quase nunca chegam vivos a essa fase, e é assim que muitos dos posts deste blog ficam para sempre perdidos no registo imaterial que são os meus neurónios. E às vezes tenho mesmo pena, porque quando os pensei eram exactamente aquilo que queria dizer, com todas as palavras e sílabas no lugar, sem tirar nem pôr. E depois perdem-se para sempre.

 

E eu tento iniciar o sono, com grande nostalgia que me pesa a consciência e me avisa que não tenho tudo dito, que há mais do que uma maneira de dizer as coisas, que a essência está cá e vai acabar por permanecer hoje, amanhã e depois... Uma espécie de ladainha mental que componho para não me esquecer que a minha vida corre também assim, a este ritmo. Que estes posts mentais hipotéticos e perfeitos não se perdem, transformam-se. Tal como eu, hopefully.

 

[ontem à noite, perto das 3h. Venci a preguiça e rascunhei isto no telemóvel]

publicado por Silvina às 22:56
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No sábado cruzamo-nos no mesmo autocarro para Veneza. Pensei que fosse musico de jazz, e imaginei-o a tocar qualquer coisa triste num bar de jazz, apesar do ambiente alegre e carnavalesco. Ao fim da tarde, depois de divagar por umas ruelas apertadas, desembarquei meia perdida numa praça ao pé da Accademia. Dei de caras com ele. Preparava-se para começar a tocar. E eu, em vez de esperar, falar com ele ou dar passinhos de caracol qual compasso de espera desajeitado, insisti na minha marcha nómada e afastei-me dali sem rumo nenhum.

Fiquei a pensar nele.
Domingo, a uma hora diferente, lá estava ele na paragem à espera do bus. Mais uma vez não exprimi nada em voz alta, apesar de, na minha cabeça, lhe ter dirigido uma série de perguntas inteligentes e reparos engraçados, para ele perceber que não sou só uma gaja desfigurada, mas que também tenho sentido de humor.
Saímos na mesma paragem, comigo sempre a pensar: "Ursa. Dá meia volta e vai falar com ele! Pergunta-lhe onde é que ele vai tocar!" Continuei esta linha de pensamento enquanto tentava decidir-me sobre que bairro da cidade visitar nessa manhã. Quando dei por mim, ele estava mais uma vez atrás de mim, a arrastar a hipotética guitarra e mais o amplificador escada acima na ponte sobre o canal. Descida a ponte, ele virou à esquerda e eu à direita. Não o vi mais.
Ainda me assombra com a sua postura, com a musica que não o ouvi tocar, com a magia dos encontros por acaso, com o mar de possibilidades ("e se lhe tivesse falado?" "E se ele me tivesse falado a mim?").


Há encontros que ficam na memória por nunca terem acontecido...


Veneza, 19/02/2012



"You may be deceived if you trust too much, but you will live in torment if you do not trust enough."

 

Frank Crane (ouvido num episódio de uma das minhas séries preferidas, Criminal Minds 7x14)

publicado por Silvina às 22:48
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