Hoje sinto-me bem. A máscara apertou-me mais do que o normal, mas entrei em zen, pus os dedos das mãos em posição Vitarka Mudra, imaginei ar branco e limpo a entrar-me nos pulmões e ar sujo e negro a sair-me pela boca. Relaxei e o tempo passou mais depressa. Gosto de controlar assim o tempo, eu, que não acredito em nada, que não rezo nem creio em seres divinos. Mas controlo o tempo porque faço gestos com as mãos, respiro concentrada, e o meu cérebro descansa.
A seguir foi a consulta. O Dr. Lambard hoje estava diferente. Vestia roupas mais escuras, mais sérias e direitas. Os sapatos também correctos, em tom que combina com as calças. Corte de cabelo diferente, dá-lhe um ar um pouco mais másculo. Vem ter comigo à sala de espera, cumprimenta-me com o olhar e pede um café à voluntária simpática que serve miminhos aos doentes -café, chá, chocolate quente, bolachinhas e conversa amigável. Manda-me entrar no gabinete onde sempre me atende. Salle 1. Sai logo a seguir para ir buscar o meu dossier. Eu também saio logo a seguir porque também quero café, apesar de saber que ele me vai observar a boca com uma lanterna e um pauzinho de madeira, e bafo de café não é lá muito agradável, mas quero lá saber, está quentinho e sabe bem.
"ça va?" pergunta-me ele. "ça va, et vous?". Está com um ar triste. Parece que carrega o peso do mundo, e isso combinado com roupa que traz e os ombros curvados faz-me ficar comovida.
"Vous avez l'air un peu triste aujourd'hui", digo-lhe eu, e ele confirma. Diz-me que são os efeitos da profissão. Penso logo que deve ter morrido alguém. Um daqueles velhos com tubos no nariz que vejo nas salas de espera todos os dias. Penso quão corajoso é o Lambard. Fazer daquilo profissão, ver doença humana todos os dias, esfriar quando é preciso, mas manter-se humano e triste outros dias. A tristeza fica-lhe bem assim. Tenho muita vontade de lhe dizer que nem tudo é triste, por exemplo, eu estou aqui, sinto-me bem, ele está a pôr-me boa. Mas isso se calhar é entrar um pouco demais na sua intimidade, não me posso esquecer que ele é francês, não está habituado a este calor humano latino.
E pronto. Diz-me que eu estou bem e que para a semana falamos mais um bocadinho. Para ele me pôr a par do que se faz a seguir à radioterapia. E eu para a semana ofereço-lhe chocolates ou outra coisa assim lamechas, para lhe amparar a tristeza e o provocar com uma ameaça de intimidade latina.