As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Sexta-feira, 11 de Maio de 2012

Faço investigação há uns aninhos. Depois do mestrado tirado em Paris fui servir às mesas, porque estava farta de pensar e já não podia ver livros à frente. Depois do restaurante andei a passear pela Ásia, já meia decidida que afinal trabalhar "como as pessoas normais" não era assim tão divertido e quando voltei do périplo asiático fui tirar outra licenciatura no estrangeiro, numa área muito parecida àquela em que já estava antes. Finalmente lá avancei para o Doutoramento, contente de ter uma bolsa (e ganhei-a bem ganha, fiquei em 1° lugar com a pontuação máxima possível) mas afundada em dúvidas e muitaaaaa falta de auto-estima. Não sabia o que queria da vida. Não sabia se era aquele "o caminho". Gostava (e gosto) de ler artigos, de fazer associações mentais, de escrever e de me desafiar. Não gostava da parte de falar em público, das confrontações com outros investigadores em despiques de ideias, e o meu sonho de vida não era ter carreira académica e dar aulas. Depois veio o cancro.

 

A tese ficou refém do cancro, e neste momento poderia escrever duas teses: uma na minha área e outra em oncologia.

 

O trabalho intelectual não pára com o cancro mas abranda. Consegui produzir alguma coisa, fui avançando aos poucos, mas é óbvio que fui obrigada a remodelar o projecto todo: disponibilidade para viagem, estabelecer contactos, fazer períodos de estudo no estrangeiro = nula. Disponibilidade mental para me preocupar com questões intelectuais enquanto estava a fazer radio, quimio ou a recuperar de mais uma cirurgia = nula. Disponibilidade para libertar espaço na cabeça para ir tendo ideias para a tese (tipo daquelas que costumam surgir na casa-de-banho, ou no autocarro) = nula, porque estava mais ocupada a reflectir sobre o sentido da vida, a mortalidade, as amizades, o amor, etc., etc.

 

Ando há três anos "em modo de sobrevivência", como me disse hoje uma amiga. Hipotequei o meu futuro académico. Vou acabar a puta da tese, disso não tenho dúvidas. Mas também não tenho ilusões: não tenho um CV suficiente bom para me aceitarem num pós-doc, ou para conseguir outra bolsa, porque nesses concursos só se pode apresentar um CV. E eu tenho dois: o CV académico e o CV do cancro.

 

Há uns tempos despertei para uma realidade que desconhecia por completo em mim: a vontade de ajudar os outros, não uns quaisquer outros, mas os outros que sofrem. Aqueles que não têm ninguém, e se sentem sós; aqueles que tendo alguém, se sentem sós na mesma; aqueles que têm dores; aqueles que estão hospitalizados. Comecei a pensar em mudar de vida.

 

Quero fazer algo de menos teórico e mais prático. Quero meter a mão na massa, e acho que depois do que eu passei/tenho passado, acho que tenho estofo e compaixão para isso. Quero trabalhar na área da Saúde, e o voluntariado não me chega. Ainda não formalizei uma decisão, ainda não a assumi plenamente, mas tenho um novo sonho. Mesmo com o cancro, e a colecção de notáveis recidivas, sonho tirar Enfermagem.

 

Reacção da minha amiga J.M., enfermeira, quando há uns tempos lhe falei nesta minha ideia peregrina: "és maluca. Não sabes onde te vais meter."

 

Eu ri-me, deliciada, porque ela tem toda a razão. Não sei mesmo. Mas adoro esta minha loucura, de fazer uma coisa totalmente oposta àquilo que ando a estudar desde o 10° ano, de mudar assim de vida, aos trinta anos. Isto é liberdade.

 

 

publicado por Silvina às 17:23

Quinta-feira, 12 de Maio de 2011

Tenho um artigo para entregar até daqui a 12 dias. Faltam 12 dias para os exames. Tenho dois desafios no mesmo dia e o que me espanta é que sou forte o suficiente para terminar a porra do artigo e sobreviver com garra ao dia D. Tenho na caixa de medicamentos uma embalagem de ansiolíticos just in case mas até hoje ainda só tomei um e foi há quase 3 semanas atrás. Todos os dias trabalho um bocadinho, ao inicio só mesmo um bocadinho, um part- part-time de 1h30 ou 2h. Porque trabalho intelectual cansa e muito. E custa muito manter o nível de concentração elevado para o trabalho ser positivo. Eu já servi às mesas, e se estivesse agora a fazer isso seria muito mais fácil. Pensar custa. Sou obrigada a pôr de lado outro tipo de reflexões, medos e preocupações, para que não ocupem o espaço que o artigo tem que ocupar. A minha cabeça é limitada. Não tem espaço suficiente para tudo.

 

E neste momento em que se exige que eu repense toda a minha vida, o meu trabalho, os meus valores, as minhas prioridades, os meus projectos de futuro, ainda tenho que me re-descobrir, lidar com a doença e arranjar maneira de me priorizar sem me tornar egoísta e inflexível. Porque eu já não me sinto (muito) doente, mas ainda estou em recuperação. Porque quando a barra é mais pesada e as questões me afogam, lá voltam a insónia e as dores de cabeça e as dores de garganta e a tentação de enfiar mais morfina no bucho. E tem sido isto nos últimos dias. Ontem/hoje vi raiar o dia com os olhos já inchados e deitei-me às 7h da manhã. A manhã foi para esquecer, mas à tarde limpei os problemas, comi chocolate e deitei mãos à obra, porque o deadline não espera que eu acabe de ter pena de mim própria e de sofrer; o deadline, desta vez, é mais importante que a minha doença. Porque eu tenho orgulho neste artigo que escrevi, quero acima de tudo que seja publicado e lido. O cancro já me roubou muita coisa, e muitas oportunidades de trabalho, mas isto não me tira. Esta deadline é para cumprir.

publicado por Silvina às 17:32

Quinta-feira, 04 de Março de 2010

Estou atrasada. Atrasadíssima. Já ultrapassei completamente o limite máximo de um deadline para um trabalho que tenho que entregar ontem.

 

Pondero usar a "cancer card". Não sei se é justo. Posso usar o cancro como desculpa de um atraso que persiste há 2 meses? Eu sei que ando cansada, que não estou a ter o mesmo rendimento que antes tinha, que tenho que me poupar, que prefiro ficar deitada a ver séries que ter que ligar o portátil e trabalhar. Mas trabalho é trabalho. é importante. Para a minha sanidade mental, para sentir que fiz algo de produtivo nos últimos tempos.

 

Resumindo, estou brutalmente atrasada, será que posso usar a cancer card sem ficar com sérios problemas de consciência?

publicado por Silvina às 14:29


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