Na terça fui para o hospital para fazer a oitava cura de Erbitux. Parecendo que não, já vou na oitava, seis meses de quimio non-stop (e sem fim à vista). Dizia eu que fui para o hospital; normalmente fico sempre num quarto individual mas desta vez puseram-me num quarto duplo. Às tantas chega a minha "vizinha", uma rapariga magra, com ar esquisito e andar à pata choca. Fiquei curiosa, mas não meti conversa, porque estava nesse momento a levar com a pré-medicação da quimio (anti-histamínicos), que me deixam quase incapaz de abrir a pestana. Dormi a tarde toda. Quando estava a jantar a minha "vizinha" de quarto pede-me ajuda. Lá me levanto e com os fios todos e a perfusão atrás chego-me à sua beira. Tinha-se vomitado toda. Era vómito branco e espesso por todo o lado, na cama, na cara, nas roupas,... Apanhei a campainha do chão, chamei a enfermeira, ri-me, disse que toda a gente vomita e que não havia problema nenhum, dei-lhe uns guardanapos para ela se limpar, esperei que a enfermeira chegasse, expliquei a situação e bazei dali para fora, antes que fosse eu a chamar o gregório por contaminação e para não a deixar ainda mais envergonhada. Percebi que tinha um tumor cerebral, e que a situação se estava a deteriorar com rapidez.
Soube no dia seguinte mais pormenores: que ela tinha 28 anos, que era russa, que vivia em França há 6 anos, sozinha, que a família estava na Rússia. Não a consigo tirar da cabeça, porque o andar à pata-choca e a tontice mental (e vómitos) podia ser eu; ou melhor, posso vir a ser eu. Pensei nas minhas metástases cerebrais que ainda não me dão sintomas, pensei na mistura entre lucidez e tontice que ela demonstrava, no enorme respeito que teve comigo, porque ouvi-a dizer ao médico que estava chateada por ter o nariz entupido e me estar a incomodar com a sua respiração pesada. Não me vou esquecer tão depressa do seu olhar doce que contrastava com a dureza do enfermeiro, que se fartou de ralhar porque ela não se despachava a tomar banho nem a lavar os dentes... "Que bruto de merda", pensei eu. Como se ela tivesse a culpa de estar toda taralhouca, como se por isso merecesse menos respeito. Depois teve o dia todo sem visitas. Amanhã vou fazer o meu melhor para me arrastar até ao hospital e ver como é que ela está. Não quero que ela se sinta sozinha nos momentos de lucidez que tiver. é fodido esta transferência de nós para os outros, de quando nos deixamos tocar pelo sofrimento alheio já não nos conseguirmos abstrair. De certo modo, ela sou eu e eu sou ela.