As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Domingo, 28 de Novembro de 2010

Tenho uma memória que me salva de muitos maus momentos, que se apaga a ela própria nos momentos certos, como um "CUT" no set de uma filmagem. Estou há quase 3 semanas no hospital. Escrevo neste momento de uma cama de hospital. Algumas coisas permanecem gravadas e sentidas, como o frio glacial que me paralisou as costas (e o corpo todo a bem dizer) no pós-operatório, antes de me levarem para o recobro. Lembro-me do frio, tanto frio. Lembro-me das dificuldades a respirar, da enfermeira estúpida que não percebia o que eu, meia drogada, queria dizer. Lembro-me de passarem 3 dias, e de achar desumano não me deixarem ver as minhas amigas durante 3 dias. Na verdade tinha passado uma noite. Lembro-me cada dia que passa mais vagamente da primeira semana no hospital. Lembro-me de não falar, não respirar sozinha, e de precisar de uma data de tubos para me manter em vida.

 

Hoje os tubos foram-se. Eu mantenho-me em vida sozinha. E vou-me sempre lembrar desta grande vitória. E o resto dos meus dias vão ser uma grande vitória, porque passei tudo isto mais o que já me esqueci para ter direito a vivê-los.

publicado por Silvina às 21:50

Terça-feira, 23 de Novembro de 2010

Aqui há tempos escrevi isto, post que obteve um certo sucesso no mundo restrito de posts bem sucedidos deste blog. Um dos primeiros comentários dizia:

 

O Amor é mesmo isso, o não poder garantir nada seja em que circunstância e quando é verdadeiro resiste a tudo, embora nem sempre facilmente.

O que posso dizer mais? Se tiveres de encontrar o homem da tua vida nesta fase acredita que vais encontrar e ele vai estar sempre contigo, apesar das tempestades. Só um conselho, deixa de o idealizar :) e surpreende-te com aquele que à partida não encaixaria no perfil que desenhaste.

 

Querida Susana, devo dizer-te que tens uma costela sibilesca, pois foi exactamente isso que aconteceu, deixei-me surpreender. Quando menos esperava, num sitio ainda menos prometedor, encontrei-o. E foi um flash quase imediato. E os ideais (gozões) que descrevi no post saíram-me todos ao contrário e hoje digo ainda bem!

No fundo, quando escrevi o 1.° Cancro e engate estava a falar de flirts mesmo, engates, dates, primeiros encontros, jantarinhos a dois à luz das velas, essas coisas. Mas o cancro altera a ordem de tudo; e a velocidade de tudo. E ainda mais no fundo, o cancro assusta, assusta a pessoa que acabámos de conhecer, mas o medo é sempre inferior ao amor, submete-se a ele e não o contrário - lá está, "quando é verdadeiro".

E outra coisa que o cancro estranhamente traz ao sentimento amoroso é serenidade. Vive-se o dia-a-dia, depressa ambos compreendemos que é isso que importa. Que se/quando ultrapassarmos esta prova difícil, o resto está lá, esperançoso e promissor, horizonte de felicidade com saúde.

 

(E ele vai estar sempre comigo, apesar desta enorme tempestade.)

publicado por Silvina às 15:04

Terça-feira, 16 de Novembro de 2010

A operação correu bem.

 

Não falo, não como sozinha nem pela boca, e não ando (so de andarilho). Mas correu tudo bem. E estou viva.

 

E a dar-lhe forte e feio na recuperação, para ver se saio daqui em tempo record*.

 

 

*disseram-me entre 3 a 4 semanas. Eu quero entre 2 e 3.

publicado por Silvina às 19:48

Domingo, 07 de Novembro de 2010

Alguém me disse que amanhã começa o meu processo de libertação. é uma ideia interessante, como é que uma acção castradora e limitativa se transforma num instrumento de libertação. Tento expandir ao máximo a minha mente, para abranger todos estes significados escondidos e nada óbvios, todos estes aparentes paradoxos, como estar limitada e livre ao mesmo tempo. Será talvez uma espécie de liberdade condicional, expectante, com comité de avaliação uns tempos depois para ver se eu estou pronta para voltar a viver em sociedade. Nunca mais serei a mesma, nunca mais serei este "eu" de agora, mas sei que depois disto tudo, quando toda a poeira assentar e eu conseguir encaixar-me de novo na sociedade, o meu "eu" também se há-de expandir, e alcançará alturas que nunca imaginei alcançar.

*

Lentamente faço a mala para o hospital: T-shirts largas na gola, casacos com fecho zip, calças de pijama bonitas e confortáveis, casaco de lã que me relembra tempos antigos perto da pós-adolescência, pantufas em forma de botinhas cor-de-laranja. E ainda os produtos de higiene, o meu shampoo preferido e que cheira tão bem vê-se substituído pelo shampoo seco em spray da Klorane, gel duche o mais neutro possível e sem perfume, nada de cremes com cor, nem make-up, nem unhas pintadas. As lentes de contacto ficam na caixinha e em vez disso uso os meus óculos azuis que em certos dias e contextos me dão um ar de secretária lúbrica. Preparo as burocracias: antevejo todos os problemas que possam surgir, coisas que eu tenho que autorizar / assinar/ abençoar antes da entrada no hospital. Porque uma vez naquele mundo branco e desinfectado não há lugar para burocracias, responsabilidades, preocupações mundanas.

*

Tento conjugar o meu realismo racional com um optimismo esperançoso. Não sou gaja de crenças. Não creio porque sim. Preparo, analiso, pondero, intelectualizo mesmo. Mas não é altura para isso, é altura para ouvir o meu lado emotivo, aquele lado que não costumo privilegiar, mas no qual confio muitas vezes. Tenho muito bons instintos. Acima da média, creio. E às vezes, quando rosno ao cancro, é esse lado que me sustenta, que me transporta, que me enche de força descontrolada e avassaladora. Tenho boas hipóteses de ultrapassar isto. Tenho quase tudo alinhado para me sentir forte e invencível.

publicado por Silvina às 12:23

Sábado, 06 de Novembro de 2010

O que me sobra são pequenos nadas, decisões que parecem simples e óbvias mas que se revestem de uma importância desmedida. O poder estar sozinha, mandar naquilo que ainda me é autorizado mandar. O que me resta são pensamentos e força de vontade, egoísmo e imposições aos quais eu tenho direito. Tenho direito a muitas coisas nesta altura. A decidir quem me trata, como me tratam e quem me acompanha. Tenho direito a privilegiar a nata da nata, as pessoas que me sustentam, que me aguentam o barco, que não (me) falham se eu falhar ou fraquejar.

 

Nunca tive um período tão difícil em toda a minha vida. Tudo foi posto em questão. O porquê de respirar, as minhas limitações, as sequelas e mutilações com que posso ou não viver. Não sacralizo a vida, não vivo a qualquer custo. Isto em teoria. Porque não sei como reagiria se me tirassem o fôlego da boca, se a tal mão invisível me sufocasse. Acho que esperneava, dava uns kicks de taekwondo, e no fim lutaria pelo meu direito a decidir pelo fim que tivesse que ter. Quero acima de tudo poder escolher.

 

Dia 9 vou ser operada. Vai ser uma coisa brutal, extremamente invasiva, vou ficar (ainda) mais diferente, para sempre. Como bem me relembrou a gaja, diferente não significa mudar para pior. Posso sair disto viva, e melhor pessoa. E os novos episódios de radio que se seguem, acompanhados de 3 episódios de quimio, são basicamente a minha ultima oportunidade. é assim que, com todo o dramatismo que se impõe, declaro guerra aberta ao cancro, e a partir daqui ou vai ou racha. Eu vou ficar rachada. Mas ele vai ter que se ir embora.

publicado por Silvina às 23:16


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