As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Quinta-feira, 27 de Setembro de 2012

A intensidade dos meus dias não dá mostras de afrouxar. Sexta ao fim da tarde tive alta do hospital. Terça já estava enfiada na Box para a terceira cura de quimioterapia. Desta vez correu tudo bem, estava bem mais calma, ouvi muita música, calhou-me uma enfermeira competente e simpática que acelerou o processo todo, e para rematar tive a visita do Dr Lambard.

 

Fui e voltei a pedalar. Começo a perder os pudores de ir a pedalar para a quimio, embora haja sempre aquele momento antes de sair de casa onde penso "hmmmm... Este coração ainda está a meia haste, mais o esforço da quimio e chuva miudinha, se calhar isto não é grande ideia", mas acaba sempre por ser. O prazer de voltar para casa de bicicleta e de me sentir normal durante 15min não tem preço.

 

Não deixa de ser um dia secante, como pude confirmar quando olhei para a balança que lá tinham:

 

 

;)

 

publicado por Silvina às 22:26


Pronto, eu até andava muito caladinha sobre a crise em Portugal, o SNS, os business das seguradoras, a extraordinaria-máquina-de-radioterapia-aquaise-que-unica-no-mundo da Fundação Champalimaud (que anunciou há dias que vão começar a tratar doentes, mas que, pasme-se!, nenhum deles lhes foi referido pelo SNS...), mas hoje tenho que me exprimir, porque isto é demais:

 

Conselho de Ética admite racionar medicamentos a doentes terminais

Cristiana Freitas/Luis Dinis/Miguel Cervan 27 Set, 2012, 14:21

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida defende que é possível não fazer alguns tratamentos médicos a doentes com cancro, SIDA, ou doenças reumáticas, se tal não se justificar economicamente. A ideia surge num parecer pedido pelo Governo. E admite o racionamento de medicamentos, nomeadamente a doentes terminais.



O parecer do "Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida" começa por explicar que a necessidade de racionar medicamentos se deve a exigências feitas pela Troika nesse sentido (p.2), depois entusiasma-se e põe em causa a própria definição de saúde da Organização Mundial de Saúde: "A conceção da OMS expande, no nosso entender de forma errada, a noção de saúde para incluir quase todo o bem-estar, impedindo o estabelecimento de fronteiras e, consequentemente, bloqueando ou dificultando a possibilidade de estabelecer limites quando estes são imperiosos." (p.4).


Seguem-se uns parágrafos de masturbação intelectual na tentativa de justificar uma distribuição igualitária dos recursos, no pressuposto de que toda a gente merece ter saúde, mas que claro, com as limitações económicas que o Pais atravessa, isso não é possível.


Falha essa reconhecida no documento: "Os princípios denominados A4R [do modelo de deliberação para financiamento dos custos dos medicamentos em contexto hospitalar] destinam-se a dar legitimidade ao financiamento da concretização das decisões realizadas, num contexto de escassez de recursos, pretendendo dar o melhor ao maior número possível. No entanto, é importante sublinhar que este modelo se encontra, à partida, eticamente imperfeito, uma vez que não é possível dar o melhor a todos, tornando, assim, imperativo que a configuração das prioridades deva ser analisada de forma justa, permitindo distribuir os recursos possíveis pelo maior número de pessoas." (p.10) No fundo, é o clássico distribuir o mal pelas aldeias.


Depois o "Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida" explica num quadrozinho como deverá ser feita essa análise, quem serão os intervenientes, etc. Só de ler a proposta consigo imaginar a burocracia envolvida e a perda de tempo nestas análises de custo/beneficio. Para o CNECV, são as Administrações hospitalares que, "perante a análise benefício/custo, poderão alterar, ou não, a ordenação dos fármacos a disponibilizar em contexto hospitalar para determinada patologia." (p.10). Mas calmaaaaa lá, que para o CNECV também "É importante, por uma questão de princípio, que nesta fase sejam envolvidas os doentes com essa patologia específica." Eu acrescentaria, aqueles que ainda estarão vivos no final deste processo todo de ponderação altamente especializada...


[Vou-me despachar com a análise do parecer porque já estou a hiperventilar]


Nas conclusões, ressalvo estas duas:


"9. O CNECV não deixa de enfatizar que há também, seguramente, muito a fazer para conter despesas com fármacos de duvidosa eficácia, os quais, deverão ser reavaliados regularmente na sua efetividade e respetivos gastos pelo Estado.


10. Nos fármacos comparticipados pelo SNS, o CNECV considera premente reavaliar gastos correntes em termos de custo-oportunidade e custo-efetividade, com possíveis substituições, desinvestimentos ou suspensões. (...)" (p.13)


Não sendo médica, parece-me que falar assim por alto em "fármacos de duvidosa eficácia" quando se trata de doenças oncológicas é puramente estúpido, tendo em conta os particularismos que envolvem a doença. Cada vez mais nos encaminhamos para um tratamento individualizado do cancro, porque cada caso é um caso; mas no SNS se um fármaco funciona no Manel mas não no José é de duvidosa eficácia. Já sem falar na falta de alternativas (além de morrer) que se apresentam aos doentes em Portugal, devido aos poucos ensaios clínicos disponíveis, que segundo uma noticia recente continuam em queda.



Para terminar com uma nota pessoal, há um ano atrás ponderei ir viver para Portugal. Estaria mais perto da família, dos amigos, teria indiscutivelmente mais apoio do que tenho agora. Muitos amigos eram da opinião que eu deveria ir para Portugal sem olhar para trás. Mas em França eu tinha a minha vida, tinha o meu médico, tinha um sistema nacional de saúde de confiança. Escolhi ficar em França e hoje, tendo em conta o meu historial clínico, tenho a certeza que se tivesse ido para Portugal já tinha morrido. Não iria ter tempo para ficar 2 meses à espera de ser operada, outras 3 semanas à espera de um resultado de um exame (que aqui tenho em 2 dias), não iria beneficiar do tratamento de radiocirurgia porque só existe um aparelho destes, num Hospital privado em Lisboa, e até me benzi quando soube do preço.


Tenho a sensação que aqui me respeitam. Respeitam o meu sofrimento, a minha luta, a minha dignidade. Apesar de ser estrangeira, sinto-me em casa neste sistema em que aprendi a navegar, em que tenho contactos que não são baseados em cunhas, mas em conquistas pessoais e amizade. Tenho funcionários que me visitam no hospital, enfermeiras que me preparam um chocolate quente à tarde porque me apetecia um docinho, senhoras da recepção que me escrevem postais para casa quando vão de férias para as Caraíbas. Isto tudo me toca, isto tudo é o Sistema Nacional de Saúde. E quando há decisões politicas que o ameaçam, o povo mexe-se e corre para o defender, em vez de ir a correr comprar seguros de saúde e ir ao médico no privado. E eu, enquanto utente (e não cliente) tento fazer a minha parte: mesmo tendo direito a táxis pagos para ir e voltar do hospital prefiro ir de bicicleta ou de autocarro, tento racionalizar os medos e não andar a pechinchar exames ou análises a torto e a direito ao meu médico, reciclo medicamentos e antes de aviar uma receita vejo sempre se já tenho em casa o mesmo medicamento ou da mesma família, e caso tenha, peço ao médico se não posso tomar esse para acabar o stock. São coisas simples, mas é a minha ética pessoal. Porque eu acredito que a saúde é para todos, é um direito, que não tem preço e como tal não deveria dar lucro ao Estado. Do meu ponto de vista, é perfeitamente aceitável que dê despesa (tal como a Educação, por exemplo).




publicado por Silvina às 20:28

Terça-feira, 25 de Setembro de 2012

Hoje vou partilhar aqui um post da mãe do João. São 23h da noite e quem me ler ainda hoje pode ir para a cama reflectir e dormir sobre o assunto. E amanhã, quem sabe, acordar e agir, desafiar um amigo e irem os dois inscrever-se como dadores de medula. Os tempos estão para a acção! Chega de inércia!

 

Terça-feira, 25 de Setembro de 2012

Uma quimio já foi...
Ainda estamos no IPO mas saímos hoje. Lá para a meia-noite.
Outras se seguem. Comprimidos e injecções.
Este ciclo é "médio", dois pesados se seguem se não aparecer um dador.
Peço por tudo a quem ainda não é dador de medula para se inscrever.
É indolor e faz toda a diferença.

 

 

 

Enquanto se insiste num compasso de espera, num "ando a pensar nisso", num "se calhar vou lá amanhã inscrever-me", o João faz quimio. E quimio cada vez mais pesada. O João quer viver, merece viver, está cheio de vida. E vive a lutar, e merece medula.


Segunda-feira, 24 de Setembro de 2012

Nos cuidados intensivos de Cardiologia estive constantemente ligada a eléctrodos que me mediam o batimento cardíaco, e todas essas informações apareciam num monitor situado por detrás da cabeceira da cama, logo, nas minhas costas.

Um dia tive a visita de duas amigas de longa data, que vieram de Portugal passar uns dias comigo, e que, claro, estavam ansiosas para finalmente conhecer o Dr Lambard. Que pouco depois irrompe pelo meu quarto adentro, fica surpreendido ao vê-las ali, e começa a falar comigo um bocado atrapalhado. E eu também atrapalhada, porque conheço as minhas amigas e sabia EXACTAMENTE o que é que elas estavam a pensar naquele momento... Tentei abstrair-me dos meus próprios pensamentos pecaminosos e concentrei-me o mais que pude no discurso médico, nas informações, nos valores sanguíneos,... E passado um bocado embaraçoso, lá nos despedimos.

 

Já em casa, ao recordar a cena, diz-me a minha amiga: "E o monitor, que mostrava o teu coração a disparar e a começar a bater mais depressa!!!" Portanto, o mesmo monitor que estava viradinho para o Dr Lambard, que ele podia ver durante TODO O TEMPO que esteve ali a falar comigo, e que eu, claro, nem que apercebi... Fui desmascarada por batimentos cardíacos, escarrapachados num monitor qual detector de mentiras. Maior episódio de pós-coranço de sempre!


Domingo, 23 de Setembro de 2012

Fui rugir para a Bretanha, pés ligeiros e coração ao alto, cheirei a maresia até se me revoltarem as tripas com saudades do mar de quando eu era pequena. Apanhei um escaldão na careca. Senti-me mal, sozinha, num quarto de hotel, e mandei calar as náuseas e a vontade de vomitar com um "bebe água e dorme que isso passa, amanhã vai ser melhor" (e foi). Tive medo de ir ao Monte Saint-Michel, medo que as pernas não me segurassem e que o equilíbrio me faltasse. Não fui, fica para a próxima. Hoje escolho melhor as batalhas e os desafios. Voltei para casa de TGV. Na gare apanhei um táxi, porque tinha a cabeça a andar à roda do cansaço (e do coração já a afogar-se). A primeira coisa que o taxista me perguntou foi: "está doente?" E eu: "Sim" E ele: "Constipada?" E eu: "Não, cancro." Continuo brutinha graças a Deus. Isso não o impediu de passar o resto do caminho à conversa, e de lá pelo meio me perguntar se eu era casada, e de me perguntar se não queria sair com ele. E eu, brutinha mas educada, disse que não, que tinha cancro, que era grave, que podia morrer, não sabia quanto tempo é que tinha, e que por isso não seria muito interessante para ele começar uma relação comigo. E o gajo cala-me com esta: "Estás viva. Não te vais agora enfiar na cama e chamar a morte. Estás viva. Tens de sair, divertir-te, conhecer gente, fazer amor..." Nessa noite estava demasiado cansada para avanços, mas gostei da ideologia. Acho que foi mais uma mensagem subliminar do Universo, para mim, através da boca de um magrebino (Allah bless, povo mais porreiro que não tem problemas com doenças nem medo do cancro).

 

 

 

publicado por Silvina às 23:55

Sexta-feira, 21 de Setembro de 2012

O  coracao é uma metafora.

Ter cancro no coracao agudiza-me a consciencia disso, hoje mais do que nunca. Tenho finalmente o coracao maior do que a cabeca, gracas ao cancro e ao fluido que me enche o peito e me oprime os pulmoes e o resto dos orgaos todos ali da zona até ao figado.

Vi-o pela primeira vez na ecografia. Um estranho tumor branco que se agarra à parede do meu coraçao.

(Podia arrancar agora com metàforas infinitas)

Nao sei quanto tempo me resta, quanto tempo vai levar para ele abraçar o resto do orgao, até o forçar a parar de bater. De uma forma inesperada, este coracao està mais vivo agora do que hà um ano atràs. Està maior agora do que sempre esteve. Està mais livre, mais aberto, e mesmo com um tumor que o sufoca sente-se menos oprimido. É este o poder das metàforas. Isso e intelectualizar-se uma situaçao, puxando para a literatura, para a arte, para a vida, em vez de se abandonar ao dramatismo.

 

(Posto ainda do hospital. Quando estiver na minha casinha respondo como deve de ser aos vossos comentarios -mas para ja queria dizer-vos o quanto fico contente de vos ter a todos ao meu lado, de sentir a força que vem de cada um de vocês, de me sentir acompanhada de ondas de pensamento positivo e boa energia. Uma vez o Dr Lambard disse-me que nao podia lutar sempre sozinha. Eu sorri para dentro e nao respondi, porque era complicado explicar-lhe isto das energias, das amizades cibernéticas, do me sentir acompanhada por pessoas que me querem bem mas que eu nunca vi... Nao sei se me tornei um bocado mistica, mas acredito no -e sinto mesmo- valor da vossa presença na minha vida, na minha luta. Um simples obrigada nao chega.)

publicado por Silvina às 12:19

Quinta-feira, 20 de Setembro de 2012

Aqui vai um post directamente do hospital, sem acentos nem corrector ortografico, porque o meu telemovel é um bocado basico.

 

Às vezes fico a pensar no que tem sido a minha vida nas ultimas semanas e, francamente, é a loucura total. Sai do hospital dia 6 de Setembro, toda esburacada na cabeça por causa da radiocirurgia, e fui para casa descansar. Passados uns dias reparei que andava inchada no estomago, cansada, e com uma tosse seca chata. Dia 12 resolvi ir sozinha passar uns dias à Bretanha, para aproveitar os dias de "mini-liberdade antes da quimio" e porque me apetecia ver o mar e chapinhar os pés na rebentaçao. A tosse piorou. Passei 2 noites quase sem dormir, até que à terceira noite tive a iluminaçao de dormir sentada e consegui pregar olho. Durante o dia andei a pé, subi muralhas, andei na praia, subi e desci escadas, sempre cansada e com pouco apetite. Mandei mail ao Dr Lambard a dizer que nao me estava mesmo a sentir bem, que qualquer coisa estranha se estava a passar.

 

Assim que regressei a Paris percebi que nao podia com uma gata pelo rabo. O cansaço era muito e eu pensava: "Serà da anemia? Das porcarias que comi na Bretanha?". Segunda-feira à tarde fiz uma radiografia aos pulmoes e fui directamente mostra-la ao meu médico, que ja nao me largou mais.

 

"Tem o coraçao do tamanho da cabeça.", disse-me ele. Na radiografia mal se viam os pulmoes, todos comprimidos por uma enorme mancha branca, que significava liquido no pericardio, em volta do coraçao. Acompanhou-me logo aos cuidados intensivos de cardiologia onde fiquei internada (contra a minha vontade, porque eu so pensava "mas nao tenho aqui nada comigo, nem escova de dentes, nem cuecas..."). O médico que me fez a ecografia nessa noite estava espantado de eu ainda andar pelo meu pé e nao estar prostrada a arfar como um animal. Também me mostrou no ecran a provavel causa desse liquido todo: tenho um tumor no coraçao. Que ja ca estava desde Junho, mas sabê-lo ca em abstrato é uma coisa, vê-lo claramente nas imagens a fazer das suas é outra.

 

No dia seguinte puseram-me um dreno (conta como cirurgia, portanto a minha 13a!). No final tiraram quase 1,5l de liquido. Um-litro-e-meio. Tinha uma garrafa de agua no peito e o meu coraçao aguentou-se à bomboca, com tumor e tudo. Hoje retiraram-me o dreno e respiro muito melhor. Todo este processo custou um bocadinho, embora nao tanto como a radiocirurgia. Eu so dizia ao Lambard "nao é justo, ainda ha 10 dias sai do hospital e agora estou aqui de novo..." Mas se tudo correr bem saio amanha. E estou pronta para voltar a pedalar por ai fora e usar e abusar do meu musculo cardiaco.

publicado por Silvina às 15:20

Sábado, 08 de Setembro de 2012

Estava no hospital e li este post da Ana. Não acreditei, não queria acreditar. Tinha passado o dia a chorar, mas ainda tinha algumas lágrimas para a Cá. Esta bonequinha, que me tornou alerta da importância de doar medula óssea. Que lutava e vivia com todas as suas forças.

A Cá partiu, mas fica a sua mensagem, que importa relembrar. E transcrevo aqui um dos meus posts preferidos do seu blog. Depois disto, quem vier argumentar que doar medula custa muito é um ogre sem coração.

 

Sejam DADORES DE MEDULA e deixem-se de tretas!!!

Tenho 7 anos e desde os 4 que conheço este hospital.
Desde a primeira vez, fiz tratamentos de quimioterapia, muitas vezes, tantas que nem sei.
Vivi grande parte destes anos num quarto 4x4 onde ao longe, consoante o quarto que me destinam, posso ver bem lá ao fundo um bocadinho de mar.
Outras vezes nem isso.
Da primeira vez, sempre que fui a casa, era como se tivesse que aproveitar o tempo todo duma assentada. O tempo que lá estava era curto, muito curto.
Depois de muitos meses, quase um ano, fiz um transplante. Um dador que nem sei o nome deu-me esperanças de vida.
Passei pela queda do cabelo, pelas dores de barriga, pelas febres, pelas diarreias, pela falta de apetite.
Dessa primeira vez, lembro-me que tive muitas aftas na língua.
Mesmo quando em alguns momentos a fome me vinha, não conseguia comer, tantas eram as dores que sentia.
O dia que voltei a casa foi duma alegria muito alegre, duma felicidade muito feliz, dum contentamento muito contente.
.
Aos poucos fui ganhando forças, mas nos entretantos, tive que ser internada: um bichinho no cateter que não me deixava descansada.
Consegui ainda assim, sempre com consultas periódicas, ter uma vida minimamente normal. Passei fins de semana fora de casa e até consegui estar de férias. Apesar de não poder ir à escola, tive uma professora que me ensinou as primeiras letras e os primeiros números. Brinquei com os meus amigos. 
Senti a minha alegria na alegria que via na família.
Quando nada o fazia prever, depois de um mais um ano em que tudo parecia seguir o melhor caminho, aqui estou eu de volta outra vez a repetir toda esta parte menos boa que já conhecia.
Felizmente as células malignas foram detectadas logo no inicio. Felizmente o meu dador inicial, tinha-me dado muitas células e muitas delas estavam ainda bem guardadinhas.
Assim voltei a fazer mais um transplante.
Mais quimioterapia, queda de cabelo, febres altas, comichões insuportáveis, o corpo inchado e a melancolia de querer voltar a casa.
Aprendi palavras e frases que a maioria dos meus amigos da mesma idade que eu, desconhecem: cateter, mielograma, tirar sangue, ver as tensões, seringas. Tenho-me tornado grande mesmo continuando pequenina.
Agora os valores de sangue estão bons, a medula começou a dar sinais de vida, mas a doença do hospedeiro, que apesar de eu não entender, é bom, deixou-me algumas mazelas no aparelho digestivo.
Isso quer dizer que está tão ferido que não consegue ‘mastigar’ a comida. Tive por isso enjoos e ‘gomitos’ e noites muito mal dormidas.
Tive que começar a comer por um saquinho. Eu até nem me chateio porque a vontade de comer não é nenhuma.
Tenho estado tristinha, sem conseguir inventar brincadeiras que me possam transportar para lados diferentes onde possa sentir um pouco de alegria. Deve ser por isso que durmo muito. Para ver se nos sonhos encontro uma portinha que me possa levar até casa, nem que seja só por um bocadinho.
Agora estou a começar a comer: primeiro só água de canja de galinha, depois um bocadinho de chá. Hoje um pouquinho de pão torrado e amanhã arroz e bifinho de frango grelhado. E eu que só me lembro das bolachas Maria….!!!
Sei que já estive mais longe. Sei que aos pouquinhos vou voltar a sentir-me melhor para poder voltar a casa.
Esse é o meu objectivo.  No caminho da CURA!
Tenho sete anos, feitos faz pouquinho e desde os quatro que conheço este hospital.
Por isso, aos que dizem que ser dador de medula dói, eu digo-lhes: vamos trocar? Eu troco com vocês e nem preciso pensar um pouquinho.
Sabem o que vos digo: SEJAM DADORES DE MEDULA E DEIXEM-SE DE TRETAS.
 
Beijos Grandes de Enormes da Cázinha
P.S. Apareço na Revista Lux desta semana :)

 

 

 



"If you don't start somewhere, you'll get nowhere."

Bob Marley

 

 

Esta semana fui hospitalizada, para o tão esperado tratamento à metástase cerebral, chamado Gamma Knife (ou radiocirurgia). Passei noites sem dormir, só a pensar que poderia acontecer o que já me tinha acontecido antes (3 vezes!): o tratamento ser recusado à última da hora porque apareceria qualquer coisa má.

Mas não.

Fizeram-no.

A coisa começou mal, porque tive uma quebra de tensão brutal na véspera, quando a enfermeira me estava a tentar colocar uma agulha na mão. Pensei que fosse morrer ali, naquele momento. E ela também, que de olhos arregalados não saia de ao pé de mim. Mais tarde confessou-me que nunca lhe tinha acontecido a tensão arterial descer assim... Quando comecei a melhorar, disse-lhe para não me tocar mais e me deixar dormir.

No dia seguinte acordaram-me às 5h e às 8h fui para o bloco. Este tratamento, que é apresentado como uma revolução, uma coisa super pipi, ultra moderno, um tratamento de ponta, exige que se meta o paciente numa "gaiola" de metal, presa à cabeça com 4 parafusos:

 

Assim que me picaram para as 4 anestesias comecei a chorar de dor. Não parei de chorar até ao 12h. Foi bom ser maricas, porque me passaram à frente de toda a gente e fui a primeira a fazer o tratamento. Mesmo assim tive que ficar enjaulada das 8h às 14h30. O quadro de metal preso à cabeça é, nas palavras da minha vizinha de quarto que também partilhou comigo o privilégio de o experimentar, "bárbaro, medieval e degradante". Eu concordo. Percebo a sorte que tive em me terem aceite para este tratamento, espero que funcione (só saberei daqui a 1 mês) mas enquanto me lembrar não repito a brincadeira.

 

[Também não ajudou ter feito o tratamento uma semana após a quimio, com aquele cansaço, anemia e privação de sono.

Queria ter conseguido responder a todos os mails e comentários, mas tenho estado mesmo cansada, sem energia sequer para teclar.]

 


Sábado, 01 de Setembro de 2012

As saudades batem em dias como hoje, assim do nada, porque o que mais me apetecia agora era telefonar à minha avó e conversar com ela, ouvi-la animar-me o dia, dizendo qualquer coisa como: "oh filha, deixa lá, estás careca, mas há coisas piores, e tu já passaste por tanto. Tenho a certeza que estás bonita na mesma." E eu ia sorrir e acreditar só porque era ela que me dizia, mesmo olhando-me ao espelho, vendo-me careca e com borbulhas no couro cabeludo. E embora ache que a minha cabeça não seja feia de todo, ainda há um longo caminho a percorrer até aceitar a ausência de cabelo, as borbulhas, o nódulo canceroso que, saliente, me relembra que o cancro me assombra a cabeça, e que mesmo com duas doses de quimio continua ali, firmo e hirto.

Wikipedia: equine leukoencephalomalacia.

publicado por Silvina às 18:49


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