Alguém me disse que amanhã começa o meu processo de libertação. é uma ideia interessante, como é que uma acção castradora e limitativa se transforma num instrumento de libertação. Tento expandir ao máximo a minha mente, para abranger todos estes significados escondidos e nada óbvios, todos estes aparentes paradoxos, como estar limitada e livre ao mesmo tempo. Será talvez uma espécie de liberdade condicional, expectante, com comité de avaliação uns tempos depois para ver se eu estou pronta para voltar a viver em sociedade. Nunca mais serei a mesma, nunca mais serei este "eu" de agora, mas sei que depois disto tudo, quando toda a poeira assentar e eu conseguir encaixar-me de novo na sociedade, o meu "eu" também se há-de expandir, e alcançará alturas que nunca imaginei alcançar.
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Lentamente faço a mala para o hospital: T-shirts largas na gola, casacos com fecho zip, calças de pijama bonitas e confortáveis, casaco de lã que me relembra tempos antigos perto da pós-adolescência, pantufas em forma de botinhas cor-de-laranja. E ainda os produtos de higiene, o meu shampoo preferido e que cheira tão bem vê-se substituído pelo shampoo seco em spray da Klorane, gel duche o mais neutro possível e sem perfume, nada de cremes com cor, nem make-up, nem unhas pintadas. As lentes de contacto ficam na caixinha e em vez disso uso os meus óculos azuis que em certos dias e contextos me dão um ar de secretária lúbrica. Preparo as burocracias: antevejo todos os problemas que possam surgir, coisas que eu tenho que autorizar / assinar/ abençoar antes da entrada no hospital. Porque uma vez naquele mundo branco e desinfectado não há lugar para burocracias, responsabilidades, preocupações mundanas.
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Tento conjugar o meu realismo racional com um optimismo esperançoso. Não sou gaja de crenças. Não creio porque sim. Preparo, analiso, pondero, intelectualizo mesmo. Mas não é altura para isso, é altura para ouvir o meu lado emotivo, aquele lado que não costumo privilegiar, mas no qual confio muitas vezes. Tenho muito bons instintos. Acima da média, creio. E às vezes, quando rosno ao cancro, é esse lado que me sustenta, que me transporta, que me enche de força descontrolada e avassaladora. Tenho boas hipóteses de ultrapassar isto. Tenho quase tudo alinhado para me sentir forte e invencível.