As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Domingo, 03 de Abril de 2011

Acordo várias vezes à noite para cuspir num guardanapo, que coloco na mesa de cabeceira ao meu lado para não ter que me levantar. Durmo com um resguardo na almofada e um guardanapo ao pé da boca para aparar a baba, que teima em sair, julgo eu, porque me custa a engolir e por isso, à noite, onde a consciência não é rainha, não engulo. Acordo com imensas dores de garganta e tenho logo que ir tomar morfina. Agora já consigo engolir as cápsulas, mas durante mais de um mês tinha de as abrir, deitar o conteúdo numa colherzinha de iogurte e engolir a morfina assim.

 

Continuo com o pescoço inchado, dorido e duro, e de manhã custa-me imenso a recuperar a elasticidade própria de uma gaja de (quase) 30 anos. Pareço uma velha com torcicolo que não sabe para que lado se há-de virar para que doa menos. Depois de tomar a morfina esta sensação passa. Durmo mal porque não sei como parti duas costelas do lado direito, e é para esse lado que me deito, porque do outro dói-me a cara e o pescoço. Encontrar posição para dormir é um tormento. Continuo a só comer líquidos, e a custo, porque me dói a engolir, mesmo com morfina. O jantar demora-me 3h. Respirar também custa, não só por causa das costelas partidas que me impedem de respirar fundo, mas também por causa da garganta, que impede uma respiração normal pela boca.

 

Resumindo: dormir é um tormento, comer também e respirar um tormento um pouco mais pequeno.

 

Mesmo assim faço a minha vida. Ou melhor, tento fazer a minha vida o mais normal possível. Tenho apoio psicológico uma vez por semana. Mais do que o cancro e todas as sequelas físicas dos tratamentos, também é difícil manter o equilíbrio emocional, na nossa relação connosco próprios e com os outros, sejam eles família ou amigos. Tudo mudou e tudo é extremamente difícil. Também tenho sessões semanais com uma terapeuta de sofrologia, uma técnica de relaxamento que ajuda a "desligar" o cérebro por momentos e a encontrar um equilíbrio entre o corpo e a mente. No meu caso isto serve principalmente para lidar com os problemas de insónia. Só adormeço depois das 6h da manhã. Tenho dificuldade em deixar-me ir, em desligar a cabeça e não pensar. Não é que ande conscientemente a reflectir o tempo todo, é mais uma necessidade do cérebro de se manter em controlo, de estar atento a tudo. Não acredito muito em terapias alternativas, mas resolvi experimentar. Faz parte do meu novo eu depois de tudo o que passei - um eu mais emotivo, mais atento ao lado das intuições e sensações. Acordar e deitar-me com dores todos os dias desde há 5 meses muda qualquer pessoa. A dor afecta tudo, o humor, a resistência física, a paciência, e acho que é a minha maior luta: como levar uma vida normal com dor todos os dias, sem deixar que esta dor domine os meus dias. Hoje, por exemplo, é domingo, lá fora chove, tenho uma enxaqueca há 2 dias, fora as dores na perna, pescoço e garganta habituais. Hoje não consigo arranjar força para sair de casa. Mas não faz mal, não vou culpabilizar. Vou aproveitar para arrumar a casa, lavar roupa e cozinhar um belo jantar todo passadinho com a varinha mágica. Sem ilusões, faço o possível para não me desorientar, para não baixar os braços e não me perder no meio de todas as dificuldades, no meio de todas as lutas diárias. Mas estou cansada que todos os dias sejam uma luta. Nunca mais tenho um dia em que posso parar e descansar. Só isso, parar por um dia e descansar.

publicado por Silvina às 16:32


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