As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Domingo, 03 de Julho de 2011

Pronto, a minha actividade física -ou o famoso ginasticar da Rua Sésamo- resumiu-se a duas idas ao ginásio até ficar doente outra vez. Nada a ver com cancro. Desta vez foi uma contractura muscular (não sei se se diz assim), que me obrigou a andar de coleira (leia-se, colar cervical) três dias, e aumentar a minha dose de medicamentos para o triplo. Bonito.

 

O objectivo do ginásio era ficar mais saudável, mais tonificada. Em vez disso fiquei de cama, com dores do caraças e de coleira enfiada.

 

Isto ilustra o que é a recuperação de um doente com cancro: longe de ser uma curva ascendente, onde cada dia estamos melhor, é mais uma montanha russa, onde num dia estamos benzinho e no dia a seguir na merda, e onde temos sempre por companhia uma data de comprimidos.

 

Começo a desesperar.

 

Queria tanto voltar a sentir que tenho o controlo da minha vida, que posso fazer as coisas que me proponho fazer, que tenho todas as condições para alcançar os meus objectivos. É que determinação não chega. Por mais determinada que esteja não posso apagar as dores e injectar saúde neste corpo. Tenho que me conformar. É isto que me põe doida; eu que NUNCA fui pessoa de se conformar com nada -aliás, o meu lado rebelde impede-me de aceitar conformismos-, sou agora obrigada a fazê-lo. O cancro dá cabo da personalidade de qualquer pessoa. É-se obrigado a mudar sem o queremos.

 

Sempre vi a mudança como uma coisa inerentemente positiva, parte do meu carácter meio nómada. E aceitei-a até aqui sem medos, porque a mudança faz parte da vida. Mas só é bonito (como o 25 de Abril) se a pudermos escolher. Quando é uma mudança imposta, que nos transfigura para pior, o desafio de a aceitar e de aprender a transformar a mudança numa coisa positiva é enorme.

 

Por isso nunca se pode voltar a ser quem se era antes do cancro. Simplesmente, não é possível. E assim tenho que me reinventar, quando estava tão bem na minha pele antes do cancro. Agora sou forçada a ser outra pessoa, parece que tive que nascer de novo. E nascer dói. Por isso é que considero esta fase (da recuperação, da remissão) a mais complicada no percurso para a cura. É quando se precisa de mais apoio, porque temos que reaprender basicamente tudo sobre nós próprios. Os nossos valores e referências mudam para sempre. De repente, já não temos chão. O que considerávamos sagrado torna-se profano. Tudo gira do avesso, e somos apanhados no meio deste turbilhão de medos, emoções e mudanças não pretendidas.

 

40% dos doentes de cancro nesta fase desenvolvem uma depressão. A sensação de incompreensão é maior do que nunca. Numa altura em que toda a gente julga que nos devemos sentir aliviados e felizes por estar em remissão é quando nos sentimos mais pressionados e tristes, onde os nossos medos emergem e o pessimismo que temos a priori se expande, incontrolável. Todas os problemas que antes do cancro já tínhamos dificuldade em ultrapassar agora aumentam exponencialmente. Auto-estima? O problema aumenta para doses inimagináveis; Desequilíbrio? Stress? Idem, idem, aspas, aspas. E não há ninguém, nem comprimido nenhum que nos salve. Temos de estar à altura, e sair da sombra deste contexto, reinventar formas de vida, reconstruir uma pessoa inteira do nada, e procurar pedacinhos do quotidiano que façam sentido, que nos tragam uma certa (ilusão da) felicidade.

publicado por Silvina às 15:13


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