"It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to heaven, we were all going direct the other way (...)"
Charles Dickens, A Tale of Two Cities
Ando aqui há uns tempos (meses) a remoer sobre estes temas. Pus em causa tudo o que sabia sobre a amizade, sobretudo em relação a mim própria, enquanto amiga. Sei que, para quem lê o que escrevo, pode parecer que estou muito sozinha. E não vou mentir. Muitas vezes estou. Não só porque o cancro é uma doença solitária, como já expliquei por alto aqui, mas também porque eu tomei a decisão de ficar a viver em França e de ser seguida cá, em vez de ir para Portugal. Acontece que eu já morava cá antes do cancro. Mas toda a minha família mora em Portugal. Nisso sou emigra, contente e assumida. Claro que é complicado estar longe da família, para eles, para mim, para todos. Durante mais de um ano tive a sorte de ter amigas maravilhosas que nunca me deixaram enfrentar a doença sozinha, acompanhando-me sempre para todo o lado (exames, consultas, tratamentos de radio, cirurgias,...).
Hoje vou sozinha fazer os exames, e vou sozinha às consultas. Os últimos dois tratamentos de radioterapia fi-los sozinha também. Na última operação-flash-surpresa para retirar o gânglio também estive sozinha. No entanto, quando fui operada ao pulmão tive família por perto, antes e depois da intervenção, e tive a visita de alguns amigos no hospital que fizeram toda a diferença, porque me fizeram rir muito e sentir-me uma pessoa normal e acarinhada. Apareceram amigos que nunca imaginei que aparecessem. Os que eu imaginei ou que esperava que aparecessem não o fizeram. Fiquei triste, claro, não posso mentir. Mas entendo o porquê, e esse laivo de entendimento ajuda a mitigar a mágoa.
E o que todas estas experiências me ensinaram sobre a vida, os amigos, as relações entre as pessoas, os medos, a falta de comunicação é que há pessoas para tudo. Toda a gente tem limites, e ao mesmo tempo toda a gente é capaz de tudo. Do melhor e do pior. é isso que significa ser humano. A mesma pessoa pode num dia demonstrar qualidades incríveis e no momento seguinte os piores defeitos. Há pessoas mais generosas que outras, mais altruístas, mais disponíveis. Há pessoas que encaixam melhor o sofrimento e a doença, há outras a quem isso paralisa, e que desenham paralelos com as suas próprias vidas -e para essas pessoas a minha doença é sinónimo de um medo paralisador. E não conseguem lidar comigo. Deixam de conseguir interagir comigo como antes. Há também aqueles que não sabem o que dizer, ou que têm medo de dizer a coisa errada. E por isso não dizem nada. E afastam-se. E continuam as suas vidas como antes, pensando em mim de vez em quando, mas não durante demasiado tempo, o suficiente para que isso não lhes contamine a visão de uma vida imaculada, cheiinha de saúde -a deles. E há também aqueles que por não dizerem nada há uma data de tempo se sentem envergonhados de escrever um mail ou mandar uma mensagem para perguntar como é que eu estou.
Agora segue-se um momento de "ai, vi a luz": Não se preocupem em dizer a coisa certa. Isso não existe. Nenhum doente oncológico está à espera que os outros se expressem através de palavras abençoadas por Jesus, palavras que trazem consigo "a verdade" ou que por si só têm poderes curativos. Ninguém está à espera de tais palavras de sapiência. Eu não estaria à espera disso nem vindas do Dalai Lama! Claro que é importante não dizer parvoíces género: "Ah, tens metástases no pulmão? Tenho um tio que morreu por causa disso." ou comparações disparatadas com outros tipos de cancro: "A C. também fez quimioterapia e agora está óptima!" Pormenor: a C. tinha um linfoma, com mais de 90% de possibilidades de cura -Eu tenho um cancro das glândulas salivares, com menos de 10% de hipóteses de sobrevivência (outro pormenor: quem me disse esta última tirada brilhante foi a minha mãe...).
Ultimamente tenho-me esforçado para não perder tanto tempo a pensar nas relações humanas. é desgastante, tira-me o sono, e a maior parte dos erros que fiz não posso voltar atrás e desfazê-los. Foi importante ter chegado a algumas conclusões em relação à família e amigos, foi importante ter aprendido acima de tudo a não ter expectativas irrealistas em relação às pessoas. Ando a tentar não pedir demasiado, respeitando os espaços e as liberdades de cada um. Mas a minha necessidade de ter gente à minha volta que me ajude e me dê força não diminuiu; muito pelo contrário. Mas tive de encontrar em mim essa força, tive que explorar pedaços do meu ser que desconhecia, escarafunchar até fazerem sentido, tive que me pôr em pé sozinha muitas vezes, e com a repetição, isso foi-se tornando mais fácil. E trouxe-me bastante confiança em mim própria, na minha força, nas minhas capacidades. Foi a prova que eu precisava que face à adversidade, eu não me vou abaixo. E se em tempos me questionei o que eu valia ainda enquanto amiga, se estou constantemente numa posição subalterna, a ter que pedir, a receber do outro, porque tenho cancro, agora sei que é isso que eu tenho: confiança para ser eu por inteiro. E quem quiser aprecia, quem não gostar pode passar a bola a outro.