Faço investigação há uns aninhos. Depois do mestrado tirado em Paris fui servir às mesas, porque estava farta de pensar e já não podia ver livros à frente. Depois do restaurante andei a passear pela Ásia, já meia decidida que afinal trabalhar "como as pessoas normais" não era assim tão divertido e quando voltei do périplo asiático fui tirar outra licenciatura no estrangeiro, numa área muito parecida àquela em que já estava antes. Finalmente lá avancei para o Doutoramento, contente de ter uma bolsa (e ganhei-a bem ganha, fiquei em 1° lugar com a pontuação máxima possível) mas afundada em dúvidas e muitaaaaa falta de auto-estima. Não sabia o que queria da vida. Não sabia se era aquele "o caminho". Gostava (e gosto) de ler artigos, de fazer associações mentais, de escrever e de me desafiar. Não gostava da parte de falar em público, das confrontações com outros investigadores em despiques de ideias, e o meu sonho de vida não era ter carreira académica e dar aulas. Depois veio o cancro.
A tese ficou refém do cancro, e neste momento poderia escrever duas teses: uma na minha área e outra em oncologia.
O trabalho intelectual não pára com o cancro mas abranda. Consegui produzir alguma coisa, fui avançando aos poucos, mas é óbvio que fui obrigada a remodelar o projecto todo: disponibilidade para viagem, estabelecer contactos, fazer períodos de estudo no estrangeiro = nula. Disponibilidade mental para me preocupar com questões intelectuais enquanto estava a fazer radio, quimio ou a recuperar de mais uma cirurgia = nula. Disponibilidade para libertar espaço na cabeça para ir tendo ideias para a tese (tipo daquelas que costumam surgir na casa-de-banho, ou no autocarro) = nula, porque estava mais ocupada a reflectir sobre o sentido da vida, a mortalidade, as amizades, o amor, etc., etc.
Ando há três anos "em modo de sobrevivência", como me disse hoje uma amiga. Hipotequei o meu futuro académico. Vou acabar a puta da tese, disso não tenho dúvidas. Mas também não tenho ilusões: não tenho um CV suficiente bom para me aceitarem num pós-doc, ou para conseguir outra bolsa, porque nesses concursos só se pode apresentar um CV. E eu tenho dois: o CV académico e o CV do cancro.
Há uns tempos despertei para uma realidade que desconhecia por completo em mim: a vontade de ajudar os outros, não uns quaisquer outros, mas os outros que sofrem. Aqueles que não têm ninguém, e se sentem sós; aqueles que tendo alguém, se sentem sós na mesma; aqueles que têm dores; aqueles que estão hospitalizados. Comecei a pensar em mudar de vida.
Quero fazer algo de menos teórico e mais prático. Quero meter a mão na massa, e acho que depois do que eu passei/tenho passado, acho que tenho estofo e compaixão para isso. Quero trabalhar na área da Saúde, e o voluntariado não me chega. Ainda não formalizei uma decisão, ainda não a assumi plenamente, mas tenho um novo sonho. Mesmo com o cancro, e a colecção de notáveis recidivas, sonho tirar Enfermagem.
Reacção da minha amiga J.M., enfermeira, quando há uns tempos lhe falei nesta minha ideia peregrina: "és maluca. Não sabes onde te vais meter."
Eu ri-me, deliciada, porque ela tem toda a razão. Não sei mesmo. Mas adoro esta minha loucura, de fazer uma coisa totalmente oposta àquilo que ando a estudar desde o 10° ano, de mudar assim de vida, aos trinta anos. Isto é liberdade.