Já várias vezes me disseram que ter cancro e medo da morte era normal. Que ter a morte em face como eu tenho era normal; afinal, todos morremos um dia. E não sabemos quando, amanhã podemos andar na rua e ser atropelados por um autocarro. Ou cair de um penhasco no Guincho enquanto tiramos fotografias.
Mas imaginem:
- O chiar dos travões, o vosso coração acelerado, o medo, o vosso espaço vital a ser invadido por um monstro com motor, a vida a passar-vos diante dos olhos, a inevitabilidade do fim, o tomar de consciência inevitável que ocorre em centésimos de segundo, "é agora, vou morrer" e mesmo antes de morrer ficam parados nesse instante, em modo pause;
- O chão a fugir debaixo dos pés, o vento que bate mais forte na cara, o estender das mãos inútil porque não há nada onde nos podemos agarrar, o medo, a queda a tomar forma, a chegada do vazio e, perto do fim, a tomada de consciência inevitável que ocorre em centésimos de segundo, "é agora, vou morrer" e mesmo antes de morrer ficam parados nesse instante, em modo pause;
Imaginem-vos suspensos nesse momento, à beira dela, à beira da extinção. De todo o vosso ser, os vossos gostos, os vossos amores. O fim das palavras que ainda tinham para dizer, das ideias que ainda tinham para pensar, o desaparecimento da vossa ordem do mundo, da vossa singularidade, das vossas memórias. Imaginam quem fica, desamparado, perdido com a vossa perda. Imaginem-vos suspensos nesse instante. Em modo pause.
é assim que eu vivo, TODOS OS DIAS da minha vida. à beira desse fim. Por isso não me banalizem a morte por cancro, comparando-a com ser atropelado por um autocarro quando se atravessa a rua, comparando-a com todas essas coisas que podem acontecer (mas não estão ainda a acontecer), sejam elas acidente de carro, avião, de mota, afogamento numa lagoa ou numa praia sem vigilância, ou ingestão de cocktail acidental de drogas legais. São coisas diferentes, que exigem entendimentos e sensibilidades diferentes.
Cliché, but very true.