Pronto, eu até andava muito caladinha sobre a crise em Portugal, o SNS, os business das seguradoras, a extraordinaria-máquina-de-radioterapia-aquaise-que-unica-no-mundo da Fundação Champalimaud (que anunciou há dias que vão começar a tratar doentes, mas que, pasme-se!, nenhum deles lhes foi referido pelo SNS...), mas hoje tenho que me exprimir, porque isto é demais:
Cristiana Freitas/Luis Dinis/Miguel Cervan 27 Set, 2012, 14:21
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida defende que é possível não fazer alguns tratamentos médicos a doentes com cancro, SIDA, ou doenças reumáticas, se tal não se justificar economicamente. A ideia surge num parecer pedido pelo Governo. E admite o racionamento de medicamentos, nomeadamente a doentes terminais.
O parecer do "Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida" começa por explicar que a necessidade de racionar medicamentos se deve a exigências feitas pela Troika nesse sentido (p.2), depois entusiasma-se e põe em causa a própria definição de saúde da Organização Mundial de Saúde: "A conceção da OMS expande, no nosso entender de forma errada, a noção de saúde para incluir quase todo o bem-estar, impedindo o estabelecimento de fronteiras e, consequentemente, bloqueando ou dificultando a possibilidade de estabelecer limites quando estes são imperiosos." (p.4).
Seguem-se uns parágrafos de masturbação intelectual na tentativa de justificar uma distribuição igualitária dos recursos, no pressuposto de que toda a gente merece ter saúde, mas que claro, com as limitações económicas que o Pais atravessa, isso não é possível.
Falha essa reconhecida no documento: "Os princípios denominados A4R [do modelo de deliberação para financiamento dos custos dos medicamentos em contexto hospitalar] destinam-se a dar legitimidade ao financiamento da concretização das decisões realizadas, num contexto de escassez de recursos, pretendendo dar o melhor ao maior número possível. No entanto, é importante sublinhar que este modelo se encontra, à partida, eticamente imperfeito, uma vez que não é possível dar o melhor a todos, tornando, assim, imperativo que a configuração das prioridades deva ser analisada de forma justa, permitindo distribuir os recursos possíveis pelo maior número de pessoas." (p.10) No fundo, é o clássico distribuir o mal pelas aldeias.
Depois o "Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida" explica num quadrozinho como deverá ser feita essa análise, quem serão os intervenientes, etc. Só de ler a proposta consigo imaginar a burocracia envolvida e a perda de tempo nestas análises de custo/beneficio. Para o CNECV, são as Administrações hospitalares que, "perante a análise benefício/custo, poderão alterar, ou não, a ordenação dos fármacos a disponibilizar em contexto hospitalar para determinada patologia." (p.10). Mas calmaaaaa lá, que para o CNECV também "É importante, por uma questão de princípio, que nesta fase sejam envolvidas os doentes com essa patologia específica." Eu acrescentaria, aqueles que ainda estarão vivos no final deste processo todo de ponderação altamente especializada...
[Vou-me despachar com a análise do parecer porque já estou a hiperventilar]
Nas conclusões, ressalvo estas duas:
"9. O CNECV não deixa de enfatizar que há também, seguramente, muito a fazer para conter despesas com fármacos de duvidosa eficácia, os quais, deverão ser reavaliados regularmente na sua efetividade e respetivos gastos pelo Estado.
10. Nos fármacos comparticipados pelo SNS, o CNECV considera premente reavaliar gastos correntes em termos de custo-oportunidade e custo-efetividade, com possíveis substituições, desinvestimentos ou suspensões. (...)" (p.13)
Não sendo médica, parece-me que falar assim por alto em "fármacos de duvidosa eficácia" quando se trata de doenças oncológicas é puramente estúpido, tendo em conta os particularismos que envolvem a doença. Cada vez mais nos encaminhamos para um tratamento individualizado do cancro, porque cada caso é um caso; mas no SNS se um fármaco funciona no Manel mas não no José é de duvidosa eficácia. Já sem falar na falta de alternativas (além de morrer) que se apresentam aos doentes em Portugal, devido aos poucos ensaios clínicos disponíveis, que segundo uma noticia recente continuam em queda.
Para terminar com uma nota pessoal, há um ano atrás ponderei ir viver para Portugal. Estaria mais perto da família, dos amigos, teria indiscutivelmente mais apoio do que tenho agora. Muitos amigos eram da opinião que eu deveria ir para Portugal sem olhar para trás. Mas em França eu tinha a minha vida, tinha o meu médico, tinha um sistema nacional de saúde de confiança. Escolhi ficar em França e hoje, tendo em conta o meu historial clínico, tenho a certeza que se tivesse ido para Portugal já tinha morrido. Não iria ter tempo para ficar 2 meses à espera de ser operada, outras 3 semanas à espera de um resultado de um exame (que aqui tenho em 2 dias), não iria beneficiar do tratamento de radiocirurgia porque só existe um aparelho destes, num Hospital privado em Lisboa, e até me benzi quando soube do preço.
Tenho a sensação que aqui me respeitam. Respeitam o meu sofrimento, a minha luta, a minha dignidade. Apesar de ser estrangeira, sinto-me em casa neste sistema em que aprendi a navegar, em que tenho contactos que não são baseados em cunhas, mas em conquistas pessoais e amizade. Tenho funcionários que me visitam no hospital, enfermeiras que me preparam um chocolate quente à tarde porque me apetecia um docinho, senhoras da recepção que me escrevem postais para casa quando vão de férias para as Caraíbas. Isto tudo me toca, isto tudo é o Sistema Nacional de Saúde. E quando há decisões politicas que o ameaçam, o povo mexe-se e corre para o defender, em vez de ir a correr comprar seguros de saúde e ir ao médico no privado. E eu, enquanto utente (e não cliente) tento fazer a minha parte: mesmo tendo direito a táxis pagos para ir e voltar do hospital prefiro ir de bicicleta ou de autocarro, tento racionalizar os medos e não andar a pechinchar exames ou análises a torto e a direito ao meu médico, reciclo medicamentos e antes de aviar uma receita vejo sempre se já tenho em casa o mesmo medicamento ou da mesma família, e caso tenha, peço ao médico se não posso tomar esse para acabar o stock. São coisas simples, mas é a minha ética pessoal. Porque eu acredito que a saúde é para todos, é um direito, que não tem preço e como tal não deveria dar lucro ao Estado. Do meu ponto de vista, é perfeitamente aceitável que dê despesa (tal como a Educação, por exemplo).