As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Segunda-feira, 07 de Maio de 2012

[Antes]

Acordei às 6h da manhã com o estômago a sair-me pela boca, mau-estar, ácido na garganta. Levantei-me às 8h (o que não é de todo meu apanágio) fartinha de me rebolar na cama sem resultado nenhum. Comi, vi um episódio de Greys Anatomy e arrastei-me para a casa-de-banho para um pseudo-spa matinal. Seguiu-se um breve momento de pânico onde quase me faltou o ar, toquei no nódulo na garganta que descobri na sexta-feira e lembrei-me da dor que sinto do lado direito do peito de vez em quando e pensei: "pronto, vou morrer. é desta." Felizmente tinha posto uma playlist no PC a que chamo "banho energético" (que consiste basicamente em música de merda para dançar quando ninguém me está a ver) e no exacto momento em que penso isto o gajo da música canta: "Tant qu'il y a la vie, on a toujours de l'espoir" [enquanto houver vida, há esperança]. "Exactamente", pensei enquanto levantava os braços no ar, abanava as ancas e falava comigo no espelho tentando conter as lágrimas. "Vai correr tudo bem. Vai correr tudo bem."

 

 

[Durante]

Escrevo mais uma vez de uma sala de espera. Ainda com algumas dores de estômago. E dificuldade para respirar. Às vezes gostava de ser um mestre zen e desligar a ansiedade como se desliga a televisão. Estou cansada do caminho, mesmo cansada. O médico acaba de me chamar, está na hora do exame.

 

 

[Depois]

Respiro a medo. Tenho realmente algo no pescoço, mas segundo este médico radiologista (giraço, por sinal -mesmo na miséria tenho sorte-) é um quisto. Respiro ainda a medo. "Um quisto? Como é que sabe que não é um gânglio? (aponto para a imagem) é aquilo ali? Como é que distingue um quisto de um gânglio? Se calhar é melhor fazer uma ecografia para confirmar..." Pronto, ecografia marcada para 4a feira. Sorrio para dentro contente com o meu poder de persuasão. Aparentemente tenho algum fluido em torno do pulmão direito, mas o Dr. ainda tem que comparar com imagens antigas e só depois do outro TAC que faço daqui a uma semana poderão haver conclusões mais definitivas. Não sai de lá sem perguntar, por via das dúvidas: "Mas... Então quer dizer que no pescoço não há mais nada? Não há mais gânglios?" "Não." Disse ele. Pronto. Sai dali para fora ainda um bocadinho abananada, e a repetir para dentro "não é um tumor. Não tenho outro tumor. Não é um tumor." Só isso já são boas noticias. Ter um quisto também não tem muita piada, mas se fosse cancro era pior. Por isso peguei na bicicleta e rumei à Boulangerie com coisinhas boas ao pé da minha casa, comprei uma patisserie, fui para casa fazer café para acompanhar e deliciei-me, porque eu hoje mereço.

 

Já meio ratada porque só depois de umas garfadas me lembrei de registar o momento...

publicado por Silvina às 15:58

Quinta-feira, 05 de Abril de 2012

Comprar viagens daquelas "à séria" com um mês de antecedência tem muito que se lhe diga. Ainda para mais no meu caso. Primeiro foi a saga das vacinas e dos comprimidos anti-malária. Andei 10 dias com as receitas na carteira, a engonhar o momento de as ir aviar à farmácia. Primeiro comprei as vacinas. E ainda estou a procrastinar a compra do Malarone, porque é caro como à porra (e para dinheiro deitado à rua já me chegou a inscrição no ginásio -e ter logo a seguir uma recidiva que me deixou imprópria para desporto durante meses).

Há uma semana comprei uns calções de praia e 2 bikinis. Ainda não consegui tirar as etiquetas, tal é o medo que qualquer coisa apareça antes de partir (tipo um gânglio safado a anunciar nova recidiva).

Se antes eu já deixava tudo para a última, agora então é uma maravilha: a 5 dias da partida li 60pags do guia (que tem 300 e tal pags); não decidi percurso nenhum nem reservei nada; a roupa toda de Verão não me serve porque emagreci e só hoje é que me lembrei de ir experimentar a roupa "só para ver se fica bem" -não, não fica! Está tudo a boiar e ainda tenho que ir comprar calças e fazer bainhas-.

 

MAS

 

A depilação já está marcada, porque doente ou não, não aprecio andar macaca.

Voltei ao ginásio, para ver se ganho alguma resistência antes de abalar de mochila às costas. Comecei ligeirinha, 20 a 30min de bicicleta e uma aula de Tai Chi uma vez por semana, e tenho feito percursos cada vez maiores de bicicleta por esse Paris a fora (também ajuda a poupar nos bilhetes de metro).

 

[Um aparte: hoje a aula de Tai Chi durou 1h. Enquanto estava para lá a esforçar-me para ter uma boa postura, respirar, copiar os movimentos da prof, fui reparando nas pessoas que estavam a malhar nas máquinas ao fundo do ginásio. Saltou-me à vista uma senhora aí dos seus 45-50 anos, cota mas super seca e musculada, e pensei: "esta senhora bomba!". Depois do Tai Chi encontrei-a no balneário. Vira-se para mim e dá-me os parabéns, porque acha a aula de Tai Chi muito difícil e acha que não a conseguiria aguentar. Eu fiquei parva porque durante a aula pensei que o que aquelas pessoas a malhar nas máquinas deviam achar de mim era qualquer coisa como "que figurinha ridícula, aquela gaja deve achar que é chinoca". Afinal aqui a pata choca na sua 2a aula de Tai Chi dominou e impressionou a senhora cota-musculada ao ponto de ela o exprimir. Momento de auto-promoção e orgulho exacerbado over and out.]

 

Pelo caminho nas preparações para o nomadismo que me aguarda tive uma consulta com o Dr Lambard, que chéri como de costume me apalpou clinicamente (o pescoço!!!) e até me propôs retirar o cateter. Eu ri-me e disse "ainda nãooooo". Ele às vezes é mais doido do que eu. Combinámos fazer exames em meados de Maio, quando eu voltar do meu périplo.

 

Não estranhem se eu não postar nada durante as próximas semanas. Estarei bem, viva, a curtir um belo país quente e húmido com mosquitos e gente simpática. África, here I come!

publicado por Silvina às 22:16

Quinta-feira, 12 de Maio de 2011

Tenho um artigo para entregar até daqui a 12 dias. Faltam 12 dias para os exames. Tenho dois desafios no mesmo dia e o que me espanta é que sou forte o suficiente para terminar a porra do artigo e sobreviver com garra ao dia D. Tenho na caixa de medicamentos uma embalagem de ansiolíticos just in case mas até hoje ainda só tomei um e foi há quase 3 semanas atrás. Todos os dias trabalho um bocadinho, ao inicio só mesmo um bocadinho, um part- part-time de 1h30 ou 2h. Porque trabalho intelectual cansa e muito. E custa muito manter o nível de concentração elevado para o trabalho ser positivo. Eu já servi às mesas, e se estivesse agora a fazer isso seria muito mais fácil. Pensar custa. Sou obrigada a pôr de lado outro tipo de reflexões, medos e preocupações, para que não ocupem o espaço que o artigo tem que ocupar. A minha cabeça é limitada. Não tem espaço suficiente para tudo.

 

E neste momento em que se exige que eu repense toda a minha vida, o meu trabalho, os meus valores, as minhas prioridades, os meus projectos de futuro, ainda tenho que me re-descobrir, lidar com a doença e arranjar maneira de me priorizar sem me tornar egoísta e inflexível. Porque eu já não me sinto (muito) doente, mas ainda estou em recuperação. Porque quando a barra é mais pesada e as questões me afogam, lá voltam a insónia e as dores de cabeça e as dores de garganta e a tentação de enfiar mais morfina no bucho. E tem sido isto nos últimos dias. Ontem/hoje vi raiar o dia com os olhos já inchados e deitei-me às 7h da manhã. A manhã foi para esquecer, mas à tarde limpei os problemas, comi chocolate e deitei mãos à obra, porque o deadline não espera que eu acabe de ter pena de mim própria e de sofrer; o deadline, desta vez, é mais importante que a minha doença. Porque eu tenho orgulho neste artigo que escrevi, quero acima de tudo que seja publicado e lido. O cancro já me roubou muita coisa, e muitas oportunidades de trabalho, mas isto não me tira. Esta deadline é para cumprir.

publicado por Silvina às 17:32

Domingo, 08 de Maio de 2011

Tenho necessidade de arrumar a cabeça e o espaço que me rodeia. Comecei pela varanda, que precisava de ser varrida urgentemente. Depois montei a mesa de madeira que tinha comprado há um mês e finalmente completei o espaço com 2 cadeiras em madeira e velas para exteriores. Ficou giro. Espero sentar-me e aproveitar os dias de sol que ai vêm, tomar o pequeno almoço lá fora ou ler a ouvir os passarinhos. Vida bucólica, portanto. A seguir foi o resto da casa, limpar, arrumar, pôr máquina a lavar. Só falta limpar o pó, coisa que pouco me apraz, mas tem que ser. A cabeça fica para outro dia.

 

publicado por Silvina às 17:58

Sexta-feira, 06 de Maio de 2011

Daqui a menos de 20 dias tenho já marcados os exames de rotina. São dois, análises ao sangue e ressonância magnética. Tenho medo, todos os dias. Não sei como é que as pessoas que vencem o cancro conseguem continuar a viver e não ter sempre medo que ele volte. Ou têm e controlam-no muito bem, não sei... A mim deram-me ansiolíticos, mas no dia seguinte a ter tomado um parecia uma banana, mole e lenta. Não tomei mais. Sim, tenho medo, todos os dias penso nisso várias vezes ao dia. Mas é algo que não posso controlar. E é algo que vou ter de repetir periodicamente o resto da minha vida.

 

O medo dos exames reflecte-se por exemplo no tomar decisões: quero inscrever-me num ginásio, devo fazer uma inscrição anual ou semestral? Penso imediatamente: "é melhor semestral, porque vêm ai dois períodos de exames e nunca se sabe". Quero começar um projecto novo, devo começar agora ou esperar para saber o resultado dos exames, para não se interromper a meio e se transformar em mais uma frustração de trabalho incompleta? Quero ir de férias no Verão, devo comprar já a viagem ou esperar mais 20 dias? (esta não é assim tão difícil, vou esperar).

 

Ao mesmo tempo que não sou gaja de viver com medos, aprendo inevitavelmente a conviver com eles. E isso faz-me uma confusão dos diabos à cabeça.


Sexta-feira, 29 de Abril de 2011

Comecei a comer sólidos. Por minha própria iniciativa, já não me lembro muito bem como, peguei num donuts e comecei lentamente a comer migalha por migalha.

 

SEIS meses depois da operação já consigo comer: donuts, bolicaos, madalenas, lasanhas (espinafres e queijo), salsichas de soja, massa com natas e queijo mozzarela, crepes com chocolate, ovos com tomate. Reconhecem aqui um certo padrão de doces e alimentos cheios de açúcar?... Pois... Eu sei que não devia, mas 6 meses a racionamento é muito tempo... Agora é a vingança! Ao menos (ainda) não estou a engordar e tenho sempre cuidado de lavar muito bem os dentes que me restam.


Segunda-feira, 25 de Abril de 2011

Antes da operação de Novembro e dos tratamentos pesava cerca de 63kg. Depois da operação fiquei com 58kg. Quando cheguei aos 56kg fiquei mesmo contente, pois era o meu peso ideal, que já não conseguia atingir desde os meus 14 anos (ya...). Sentia-me bem, cheia de energia, gira e boa. Depois com os tratamentos vieram as dores, as dificuldades cada vez mais agrestes para comer, os enjoos da quimio, e a perda de 2-3 kgs a cada ciclo de quimio. Deixei de conseguir comer, só conseguia ingerir líquidos ou comida toda passada. Os batidos foram meus amigos por uns tempos, mas às tantas nem isso conseguia engolir porque tudo era ácido, tudo me provocava mais dores na boca e garganta. Cheguei a chorar de dor muitas vezes enquanto comia. O jantar prolongava-se por 3 horas. Inevitavelmente perdi peso. Chegou-se a falar de sonda gástrica, contra a qual lutei com todas as minhas forças (trauma das 3semanas com sonda nasal que entretanto se transformou em fobia de ter tubos enfiados no nariz ou na boca).

 

Escapei da sonda mas não do olhar chocado de quem me rodeava. Passei a evitar tomar banho, porque o choque que tinha ao ver-me ao espelho era brutal, e não conseguia encarar com normalidade o momento de me enfiar debaixo de água a esfregar os ossos. As pessoas olhavam-me quase com lágrimas nos olhos, e eu a sentir-me cada vez mais feia e miserável. O meu pai até me chegou a acusar de estar anoréctica, enquanto comia batatas fritas à minha frente. Bati com a mão na mesa e, aos gritos possíveis com a minha voz rouca, disse-lhe que só não me estava também a empanturrar de batatas porque não podia, porque não conseguia (e ainda hoje não consigo).

 

Senti muitas vezes culpa e responsabilidade pelos 45kg que cheguei a ter. Mas a verdade é que eu não tive a culpa. Eu fiz esforços incríveis, fiz o melhor que pude. Às tantas deixei de me pesar. Hoje acho que cheguei aos 50kg, mas estou-me a cagar para o olhar dos outros, e já não me sinto feia. Aproveitei e comprei uma mini-saia, a primeira que tenho na vida, a um mês de fazer 29 anos. É nisto que o meu novo "eu pós-cancro" se centra. Na mudança positiva, na transformação de uma situação menos boa numa oportunidade de fazer e usar coisas que antes nunca iria ter coragem de usar. Hoje exibo o meu pernão sem ter vergonha das coxas ou dos joelhos gordos.

 

E não admito mais bitaites dos outros sobre o meu peso; se quando cheguei a pesar 68kg ninguém me disse "ai credo, tens de perder 10kg!", então agora também não admito que me digam "ai credo, tás tão magra, precisas de engordar uns 10kg!". Eu é que sei do meu peso, e acima de tudo, sei que não é a balança que determina como me sinto. Sinto-me bem agora, não quero nem saber quanto peso. Estou magra sim, mas também estou gira e só preciso de ganhar músculo no rabiosque (meta a atingir assim que conseguir fazer desporto).



Eu antes não chorava. Só muito raramente, talvez duas vezes por ano. Agora tudo me emociona, ao extremo de não conseguir controlar os olhos a ficarem molhados e as lágrimas a escorrerem como se não houvesse amanhã. Sempre que vou tomar café com a M. são rios de lágrimas e emoções. Eu sei que isto faz parte do meu novo "eu pós-cancro". E não sei porque choro tanto agora. Talvez porque com as emoções vem a certeza de estar viva e respirar, de estar aqui, presente nos meus dias. Talvez porque as lágrimas me trazem o consolo de que venci esta etapa. Não sei porquê, e confesso, ainda me custa a aceitar esta minha faceta tão lamechas. Não pareço eu. Mas é isto que o cancro faz a uma pessoa, muda-a.


Domingo, 03 de Abril de 2011

Acordo várias vezes à noite para cuspir num guardanapo, que coloco na mesa de cabeceira ao meu lado para não ter que me levantar. Durmo com um resguardo na almofada e um guardanapo ao pé da boca para aparar a baba, que teima em sair, julgo eu, porque me custa a engolir e por isso, à noite, onde a consciência não é rainha, não engulo. Acordo com imensas dores de garganta e tenho logo que ir tomar morfina. Agora já consigo engolir as cápsulas, mas durante mais de um mês tinha de as abrir, deitar o conteúdo numa colherzinha de iogurte e engolir a morfina assim.

 

Continuo com o pescoço inchado, dorido e duro, e de manhã custa-me imenso a recuperar a elasticidade própria de uma gaja de (quase) 30 anos. Pareço uma velha com torcicolo que não sabe para que lado se há-de virar para que doa menos. Depois de tomar a morfina esta sensação passa. Durmo mal porque não sei como parti duas costelas do lado direito, e é para esse lado que me deito, porque do outro dói-me a cara e o pescoço. Encontrar posição para dormir é um tormento. Continuo a só comer líquidos, e a custo, porque me dói a engolir, mesmo com morfina. O jantar demora-me 3h. Respirar também custa, não só por causa das costelas partidas que me impedem de respirar fundo, mas também por causa da garganta, que impede uma respiração normal pela boca.

 

Resumindo: dormir é um tormento, comer também e respirar um tormento um pouco mais pequeno.

 

Mesmo assim faço a minha vida. Ou melhor, tento fazer a minha vida o mais normal possível. Tenho apoio psicológico uma vez por semana. Mais do que o cancro e todas as sequelas físicas dos tratamentos, também é difícil manter o equilíbrio emocional, na nossa relação connosco próprios e com os outros, sejam eles família ou amigos. Tudo mudou e tudo é extremamente difícil. Também tenho sessões semanais com uma terapeuta de sofrologia, uma técnica de relaxamento que ajuda a "desligar" o cérebro por momentos e a encontrar um equilíbrio entre o corpo e a mente. No meu caso isto serve principalmente para lidar com os problemas de insónia. Só adormeço depois das 6h da manhã. Tenho dificuldade em deixar-me ir, em desligar a cabeça e não pensar. Não é que ande conscientemente a reflectir o tempo todo, é mais uma necessidade do cérebro de se manter em controlo, de estar atento a tudo. Não acredito muito em terapias alternativas, mas resolvi experimentar. Faz parte do meu novo eu depois de tudo o que passei - um eu mais emotivo, mais atento ao lado das intuições e sensações. Acordar e deitar-me com dores todos os dias desde há 5 meses muda qualquer pessoa. A dor afecta tudo, o humor, a resistência física, a paciência, e acho que é a minha maior luta: como levar uma vida normal com dor todos os dias, sem deixar que esta dor domine os meus dias. Hoje, por exemplo, é domingo, lá fora chove, tenho uma enxaqueca há 2 dias, fora as dores na perna, pescoço e garganta habituais. Hoje não consigo arranjar força para sair de casa. Mas não faz mal, não vou culpabilizar. Vou aproveitar para arrumar a casa, lavar roupa e cozinhar um belo jantar todo passadinho com a varinha mágica. Sem ilusões, faço o possível para não me desorientar, para não baixar os braços e não me perder no meio de todas as dificuldades, no meio de todas as lutas diárias. Mas estou cansada que todos os dias sejam uma luta. Nunca mais tenho um dia em que posso parar e descansar. Só isso, parar por um dia e descansar.

publicado por Silvina às 16:32

Quinta-feira, 10 de Março de 2011

«Passados quase cinco meses, o jornalista [Jonathan Franklin] ainda mantém contacto com os mineiros e sabe que, para eles, o resgate está longe de terminar. "Não estão muito bem, muitos sentem-se perdidos e não sabem qual o seu lugar no mundo. A sua saúde mental é delicada e eles não gostam da ideia de ter aconselhamento psicológico, apesar de precisarem muito dele."

Numa entrevista recente ao programa 60 Minutes, da CBS, o mineiro Alex Veja contou que está a construir um muro em volta de casa e não consegue explicar porquê. E Victor Zamora disse que tem pesadelos, que às vezes preferia estar morto. "Não consigo ter uma relação normal com a minha família, não sou tão afectuoso com o meu filho." Ele, que "era uma pessoa feliz", ainda não foi resgatado por completo. "O outro eu ainda lá está."»

 

Extracto de um artigo no Publico (http://publico.pt/1484187)

 

 

Situações extremas provocam confusão, desorientação. Fisicamente passa-se por muitas provações, tantas, que a mente tem dificuldade em acompanhar os processos e manter o passo. O tempo psíquico está desajustado em relação ao tempo físico efectivo. O medo da morte e a consciência da sua proximidade eminente provoca a dificuldade de voltar à vida. A vida normal fica hipotecada.

 

Mais do que tudo, é um esforço imenso vencer as sequelas físicas e aguentar os desafios psicológicos com esta arma que temos, que é um corpo já cansado de muitas batalhas, magro e fragilizado.

 

E é por isto que não tenho escrito, não tenho tido tempo para pensar em mim e na minha vida, e o (pouco) tempo que tenho tido dedico-o a outras actividades. Pouco a pouco vou-me habituando a viver assim, em recuperação. No limbo. Já não sou uma pessoa doente, os tratamentos acabaram, passei essa fase, agora o contexto é outro. Mas também ainda não sou uma pessoa normal, saudável. Estou entre-mundos. E o desafio da recuperação é também o desafio da normalidade. Porque se eu conseguir ter dias normais e felizes, fazendo as actividades que sempre fiz, com as responsabilidades que sempre tive, se eu conseguir recuperar o ritmo de vida que tinha antes, então já são dias onde a doença não entra no meu vocabulário, nem na minha mente. São dias onde a doença não me assola as horas livres nem me impede o sono. Estou neste momento em recuperação e lentamente, muito lentamente, a recuperar o meu quotidiano, a reivindicar o direito que tenho em o ter, sem ser imediatamente identificada como adoentada e considerada incapaz de o fazer pelo meu círculo de amigos e família. E nesta etapa confusa, onde recuperar é ainda sinónimo de não estar bem, torna-se urgente demonstrar que recuperar também não é forçosamente estar doente. É sofrer ainda de efeitos secundários mas ultrapassá-los, não os deixando comandar os meus dias. A partir de agora sou eu que mando, sou ditadora na minha vida, dirijo os meus dias como bem entendo. O cancro já não manda aqui. Agora mando eu.

publicado por Silvina às 21:26


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