As rádios emitem em várias frequências. Estes episódios, contudo, situam-se numa frequência diferente, não uma de rádio, mas de radio. Como em Radioterapia. Episódios de um tratamento oncológico (à suivre)
Domingo, 23 de Setembro de 2012

Fui rugir para a Bretanha, pés ligeiros e coração ao alto, cheirei a maresia até se me revoltarem as tripas com saudades do mar de quando eu era pequena. Apanhei um escaldão na careca. Senti-me mal, sozinha, num quarto de hotel, e mandei calar as náuseas e a vontade de vomitar com um "bebe água e dorme que isso passa, amanhã vai ser melhor" (e foi). Tive medo de ir ao Monte Saint-Michel, medo que as pernas não me segurassem e que o equilíbrio me faltasse. Não fui, fica para a próxima. Hoje escolho melhor as batalhas e os desafios. Voltei para casa de TGV. Na gare apanhei um táxi, porque tinha a cabeça a andar à roda do cansaço (e do coração já a afogar-se). A primeira coisa que o taxista me perguntou foi: "está doente?" E eu: "Sim" E ele: "Constipada?" E eu: "Não, cancro." Continuo brutinha graças a Deus. Isso não o impediu de passar o resto do caminho à conversa, e de lá pelo meio me perguntar se eu era casada, e de me perguntar se não queria sair com ele. E eu, brutinha mas educada, disse que não, que tinha cancro, que era grave, que podia morrer, não sabia quanto tempo é que tinha, e que por isso não seria muito interessante para ele começar uma relação comigo. E o gajo cala-me com esta: "Estás viva. Não te vais agora enfiar na cama e chamar a morte. Estás viva. Tens de sair, divertir-te, conhecer gente, fazer amor..." Nessa noite estava demasiado cansada para avanços, mas gostei da ideologia. Acho que foi mais uma mensagem subliminar do Universo, para mim, através da boca de um magrebino (Allah bless, povo mais porreiro que não tem problemas com doenças nem medo do cancro).

 

 

 

publicado por Silvina às 23:55

Domingo, 26 de Agosto de 2012

Fim-de-semana no campo. E ao jantar, o seguinte diálogo:

 

Amigo de uma amiga: "Mas voltas quando para Paris?"

 

Eu: "Amanhã."

 

Amigo de uma amiga: "Já? Mas não podes voltar mais tarde?"

 

Eu: "Não..."

 

Amigo de uma amiga: "Mas porquê? O que é que tens que fazer em Paris assim tão importante?"

 

Eu penso "porra que este está a pedi-las" e digo: "Tenho que voltar para Paris porque tenho cancro e tenho que fazer quimio daqui a 4 dias."

 

Amigo de uma amiga: "Ah fixe, vais a um concerto! De quê?"

 

[NOTA: cancro diz-se cancer em francês, que pode ser confundido com concert (concerto de música), especialmente se a conversa se processa entre duas pessoas estrangeiras]

 

Eu: "Não, vou fazer quimio. Quimioterapia."

 

Amigo de uma amiga: "Que grupo é esse, não conheço."

 

Eu, já morta de riso: "Não é CONCERTO, é CANCRO, sabes, cancro - a doença!!! Tenho cancro há 3 anos!!! E vou ter que ir fazer tratamentos de quimioterapia."

 

Amigo de uma amiga: "Errrr. Ahhhh. Epa..."

 

 

Pronto. Estava a pedi-las e eu fui tão brutinha! Adoro! eheheh

publicado por Silvina às 18:43

Quarta-feira, 01 de Agosto de 2012

Não querendo roubar o titulo ao Bach, sempre gostei da expressão "a arte da fuga". Defendo afincadamente a opção de fuga quando nos chega a mostarda ao nariz, quando estamos fartos, quando não conseguimos mais respirar.

A semana passada foi extremamente dura para mim. Estava prestes a passar-me com tanta noticia de merda, a ausência do meu médico (que está de férias, também tem direito, coitadinho) e incompetência de uma data de gente que deveria ser competente e que depois se vai a ver e não é.

 

E o que é que uma pessoa (eu) faz quando está a rebentar e já não aguenta mais?

 

a) Telefona aos amigos e queixa-se;

b) Chora durante horas;

c) Compra um bilhete de avião para Marrocos para partir dali a 2 dias;

d) Todas as de cima.

 

 

 Resposta: D, claro!

 

 

 

 

 

 

(poderia exercitar-me à vontade nesta arte da fuga durante mais uma semanita...)

publicado por Silvina às 18:22

Sexta-feira, 25 de Maio de 2012

 

Acabei de ser operada. E o que mais me bateu hoje não foi o regresso ao hospital, nem o ritual de vestir a bata transparente, tirar as jóias, enfiar uns plásticos nos pés e uma touca na cabeça, nem sequer foi ouvir o médico dizer-me que se calhar o que tenho (tinha) no pescoço é mesmo um quisto e não um gânglio. O que mais me bateu hoje foi o facto de ter lido o teu livro antes e depois da cirurgia. Acompanhou-me nesta viagem, na mente, na pele, na maneira de me emocionar com o mundo -mesmo este meu mundo hospitalar. Transportou-me todo o dia, desde o momento em que o abri no metro até acabar de o ler na cafetaria do hospital, rodeada de batas brancas e verdes e pés com socas (acho que são Crocs), já com uma nova cicatriz e novas dores, e um sumo de laranja à frente. A satisfação de sentir algo enorme, maior do que eu, é mil vezes superior à de compreender um conceito metafísico importante ou de fazer uma fantástica descoberta racional. Raramente me tinha sentido assim tão inundada de emoções, e, sobretudo, nunca me lembro de ter gostado. 

 

E devo isso tudo ao teu livro, que escreveste com 25 anos e que pela tua amizade me chegou às mãos na altura certa. E tenho a certeza de que também o li na altura certa. Hoje. Obrigada por estes momentos de profundo sentir, e pelas viagens por Paris, Veneza e Roma. Também as conheci por esta ordem. E no fim, o regresso a Paris e a vontade de regressar a Lisboa. Sinto-me estranhamente em casa.


Sexta-feira, 04 de Maio de 2012

Voltei e fui acolhida com chuva e temperatura de uns simpáticos 10°C. Muito diferentes dos 32°C que faziam lá onde estive.

 

Voltei e (re)comecei e a comer chocolate, em parte porque estou cansada da viagem de 18h, e doutra parte porque me preparo para fazer exames já na segunda-feira, e é com dificuldade que controlo o medo. E atento nesta dor que de vez em quando teima em surgir do lado direito do peito, e que quero pensar que é só ansiedade. E tenho saudades da minha avó, mais do que nunca. As saudades são belas e terríveis, ainda bem que as tenho mas não gosto dos momentos de tristeza, da ausência, do vazio. é como que se o espaço dela ainda aqui estivesse, mas ficaram só os contornos. O interior que antes estava preenchido agora já não está. Ela partiu.

 

E regresso para saber da morte do Miguel Portas, de um (cabrão de um) cancro do pulmão. E do novo transplante da Carmenzita. E do familiar da Susana. E da Kitty Fane. E podia continuar a enumerar um sem fim de pessoas que sofrem com isto. E sinto-me triste que o meu regresso a Paris me relembre sempre este sofrimento. Uma cidade tão bonita não merece estar assim tão interligada à experiência cancerígena. Ou talvez seja só a chuva, que não pára, e o frio que se faz sentir e que já me obrigou a ligar a "chauffage" que já tinha desligado para poupar dinheiro.


Segunda-feira, 30 de Abril de 2012

...e recomenda-se! Finalmente consegui encontrar um acesso à internet que não se desligasse ao fim de 5min, então aproveito para deixar aqui umas linhas só mesmo para dizer que está tudo bem. No fim-de-semana regresso a casa, e prometo dar notícias fresquinhas. Tenho muita coisa para contar... Um grande até já!

publicado por Silvina às 08:54
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Quinta-feira, 05 de Abril de 2012

Comprar viagens daquelas "à séria" com um mês de antecedência tem muito que se lhe diga. Ainda para mais no meu caso. Primeiro foi a saga das vacinas e dos comprimidos anti-malária. Andei 10 dias com as receitas na carteira, a engonhar o momento de as ir aviar à farmácia. Primeiro comprei as vacinas. E ainda estou a procrastinar a compra do Malarone, porque é caro como à porra (e para dinheiro deitado à rua já me chegou a inscrição no ginásio -e ter logo a seguir uma recidiva que me deixou imprópria para desporto durante meses).

Há uma semana comprei uns calções de praia e 2 bikinis. Ainda não consegui tirar as etiquetas, tal é o medo que qualquer coisa apareça antes de partir (tipo um gânglio safado a anunciar nova recidiva).

Se antes eu já deixava tudo para a última, agora então é uma maravilha: a 5 dias da partida li 60pags do guia (que tem 300 e tal pags); não decidi percurso nenhum nem reservei nada; a roupa toda de Verão não me serve porque emagreci e só hoje é que me lembrei de ir experimentar a roupa "só para ver se fica bem" -não, não fica! Está tudo a boiar e ainda tenho que ir comprar calças e fazer bainhas-.

 

MAS

 

A depilação já está marcada, porque doente ou não, não aprecio andar macaca.

Voltei ao ginásio, para ver se ganho alguma resistência antes de abalar de mochila às costas. Comecei ligeirinha, 20 a 30min de bicicleta e uma aula de Tai Chi uma vez por semana, e tenho feito percursos cada vez maiores de bicicleta por esse Paris a fora (também ajuda a poupar nos bilhetes de metro).

 

[Um aparte: hoje a aula de Tai Chi durou 1h. Enquanto estava para lá a esforçar-me para ter uma boa postura, respirar, copiar os movimentos da prof, fui reparando nas pessoas que estavam a malhar nas máquinas ao fundo do ginásio. Saltou-me à vista uma senhora aí dos seus 45-50 anos, cota mas super seca e musculada, e pensei: "esta senhora bomba!". Depois do Tai Chi encontrei-a no balneário. Vira-se para mim e dá-me os parabéns, porque acha a aula de Tai Chi muito difícil e acha que não a conseguiria aguentar. Eu fiquei parva porque durante a aula pensei que o que aquelas pessoas a malhar nas máquinas deviam achar de mim era qualquer coisa como "que figurinha ridícula, aquela gaja deve achar que é chinoca". Afinal aqui a pata choca na sua 2a aula de Tai Chi dominou e impressionou a senhora cota-musculada ao ponto de ela o exprimir. Momento de auto-promoção e orgulho exacerbado over and out.]

 

Pelo caminho nas preparações para o nomadismo que me aguarda tive uma consulta com o Dr Lambard, que chéri como de costume me apalpou clinicamente (o pescoço!!!) e até me propôs retirar o cateter. Eu ri-me e disse "ainda nãooooo". Ele às vezes é mais doido do que eu. Combinámos fazer exames em meados de Maio, quando eu voltar do meu périplo.

 

Não estranhem se eu não postar nada durante as próximas semanas. Estarei bem, viva, a curtir um belo país quente e húmido com mosquitos e gente simpática. África, here I come!

publicado por Silvina às 22:16

Segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2012

E no meio das minhas deambulações, decido entrar num museu para perguntar onde era o multibanco mais próximo (pois, a minha faceta cultural deixa muito a desejar). Olhei em volta, vi que a entrada não era muito cara (5,50€), fui levantar dinheiro e voltei para visitar o Museu. Instalado num palácio junto ao Grande Canal, vi de tudo: armas japonesas, uma estátua Khmer, estampas orientais, pintura do século XIX e, o melhor de tudo, uma exposição de um pintor que nunca tinha ouvido falar, Gennaro Favai. Entrei na sala e de repente dei de caras com uma pintura de uma rua e dois edifícios que me pareceram familiares... C'était Paris !

 

 

Favai pintou Paris, Veneza, Capri e a exposição tinha também retratos do artista pintados por outros artistas, como Modigliani. Sem pindériquices intelectuais apreciei a arte pela arte. Gostei do que vi porque achei bonito. Foi das coisas que mais gostei de ver e de sentir em Veneza, um acaso completamente inesperado e uma descoberta que valeu bem mais do que os 5€ e tal pagos à entrada.

 

 

 

Gennaro Favai, visioni e orizzonti 1879-1958. No Ca'Pesaro, de 17 de Dezembro 2011 até 11 de Março de 2012.


Sexta-feira, 24 de Fevereiro de 2012

...num barco em Veneza!

eheh



Achei que a cidade tem a dose de decadência ideal. Se os tempos fossem outros, sentir-me-ia uma princesa à janela renascentista, numa vida de deboche e sem cancro.

 

todos mascarados menos eu

 

 

vida quotidiana no canal

 

"excuse-moi", je suis perdue...

 

Chega para lá que ainda cabe mais uma...

publicado por Silvina às 14:29


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